NEV na mídia | Folha de S. Paulo: Tendências e Debates da Folha de S.Paulo, artigo de Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias

16/05/2022

Leia artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, na editoria “Tendências e Debates” (Primeiro Caderno) em 16 de maio de 2022.

Antes de criticar os outros, é melhor olhar os defeitos de seus pares

Ideia de pacto entre governo paulista e facção criminosa é fora da realidade

Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias
Respectivamente, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP e socióloga e professora da UFABC; ambos são autores de “A Guerra – A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil” (ed. Todavia)

Link original (exclusivo para assinantes do jornal): https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/05/antes-de-criticar-os-outros-e-melhor-olhar-os-defeitos-de-seus-pares.shtml

Acesse em PDF dos originais:

 

O pré-candidato ao governo paulista pelo Republicanos, Tarcísio de Freitas, disse em abril que “São Paulo fez um pacto com o crime organizado, de não combatê-lo”. Recentemente, o assunto foi retomado na sabatina da Folha/UOL. Tarcísio afirmou que sua informação estava “registrada na literatura especializada”, citando como fonte nosso livro “A Guerra – A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil”.

Não afirmamos isso no livro. A ideia do pacto é absurda e fora da realidade. Para que ocorresse, seria preciso contar com a conivência de mais de 100 mil policiais civis e militares, com a condescendência do Ministério Público e da Justiça paulista. Em 2012, mais de 100 policiais foram assassinados no estado. Parte deles morreu em decorrência de ordens vindas de dentro das prisões, como resposta às ações violentas da polícia contra integrantes da facção.

Se não existe pacto, não faltam erros na política de segurança pública de São Paulo que contribuíram para fortalecer o Primeiro Comando da Capital. Debatemos isso no livro. A facção soube crescer entre “as brechas do sistema”, aproveitando as oportunidades oferecidas por um dos empreendimentos mais lucrativos do mundo, o mercado ilegal de drogas e das armas.

O PCC, como se sabe, nasceu em 1993, um ano depois do massacre do Carandiru, uma ação da Polícia Militar que matou 111 detentos. Após a chacina, lideranças dos presídios começaram a articular seu discurso de união dos presos paulistas para autodefesa. “O crime fortalece o crime”, era um dos motes dos fundadores. “Nosso inimigo é o sistema”.

O processo de expansão da facção continuou ao longo dos anos, quando São Paulo iniciou uma ampla reforma no sistema penitenciário. Até 1993 havia 36 unidades no estado, chegando a 179 ao longo das décadas. Junto com os novos presídios, as prisões se multiplicaram diante dos avanços das tecnologias de comunicação e da gestão da polícia.

Mais de 1 milhão de pessoas passaram pelo sistema penitenciário paulista nos últimos 30 anos. Para cumprir pena em meio à superlotação, os presos, liderados pelo PCC, passaram a definir regras nos presídios, com estatuto, normas de relacionamento e disciplina entre seus integrantes. Quanto mais se prendia, mais o Estado contribuía para o crescimento e fortalecimento da facção.

A rede de criminosos, articulada dentro e fora das unidades prisionais, profissionalizou-se: soube definir estratégias para chegar às fronteiras da América do Sul, passando a atuar no mercado atacadista, vendendo para outros estados e países.

Um dos efeitos da profissionalização foi a redução do conflito entre criminosos e demais vítimas dos ciclos de violência. São Paulo, proporcionalmente, se tornou o estado com menos homicídios do Brasil, algo impensável nos anos 1980 e 1990. Em compensação, o tráfico de drogas nunca foi tão lucrativo e forte. Esse dinheiro entra na economia formal, gera empregos, se mistura no dia a dia das pessoas e tem capacidade de influenciar a política.

Existe um amplo debate sobre como fragilizar o PCC e diminuir o lucro do tráfico: inteligência, investigação financeira, compartilhamento de informações, reestruturação da política de segurança e da política prisional etc. Nada que faça parte da cartilha do populismo bolsonarista, que aposta numa população armada e na fragilização dos controles das polícias —o que implica, inclusive, acabar com o programa de câmeras corporais, um dos mais bem-sucedidos contra a corrupção e violência da polícia paulista e que também dá proteção e garantia ao trabalho dos policiais honestos.

Uma polícia sem controle e um comércio de armas desenfreado são as sementes das milícias, facções criminosas que atualmente controlam centenas de bairros do Rio de Janeiro. São Paulo gostaria de importar esse modelo de insegurança do Rio, berço das milícias e do bolsonarismo? Em todo o caso, se o pré-candidato realmente se interessa pelo tema do crime organizado, permita-nos sugerir outro livro: “A República das Milícias – dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro”, de um dos autores deste artigo. Afinal, antes de criticar os outros, é bom olhar os defeitos de seus pares.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.​