NEV na Mídia | Conjur: Apoio de Moro e Deltan a Bolsonaro difere da postura de atores da ‘mãos limpas’

17/10/2022

Publicação da Conjur em 6 de outubro de 2022, acesse o link original com fotos e áudio: https://www.conjur.com.br/2022-out-06/moro-deltan-afastam-maos-limpas-apoiar-bolsonaro

 

Principais atores da “lava jato”, o ex-juiz Sergio Moro e o ex-procurador Deltan Dallagnol sempre afirmaram que se inspiravam na operação “mãos limpas” (mani pulite), na Itália. No entanto, após entrar na política, os procuradores que atuaram no caso se recusaram a endossar Silvio Berlusconi, o primeiro-ministro que articulou o fim do processo — diferentemente de Moro e Dallagnol, que declararam apoio ao presidente Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno contra o ex-presidente Lula (PT), mesmo após acusarem-no de enfraquecer o combate à corrupção.

Moro (União Brasil) e Dallagnol foram eleitos, no domingo (2/10), senador e deputado federal pelo Paraná, respectivamente. E logo declararam apoio a Bolsonaro no segundo turno.

“Lula não é uma opção eleitoral, com seu governo marcado pela corrupção da democracia. Contra o projeto de poder do PT, declaro, no segundo turno, o apoio para Bolsonaro”, publicou o ex-juiz nesta terça no Twitter.

Dallagnol compartilhou a postagem de Moro e acrescentou: “Precisamos unir centro e direita em favor do combate à corrupção, de políticas públicas com base em evidências e de valores da cultura judaico-cristã que dão base à nossa sociedade como amor, compaixão e serviço às pessoas”.

Antes disso, o ex-procurador já havia deixado claro que endossaria o presidente no segundo turno. “Agora vou fazer oposição à candidatura do Lula ou ao seu governo por sete razões: mensalão, petrolão, aumento da violência, saque às estatais, defesa da censura, apoio a ditaduras e a maior crise econômica da história. No segundo turno, meu voto vai ser em Bolsonaro, contra Lula e o PT. Nós precisamos unir o centro e a direita no Congresso em torno do combate à corrupção”, afirmou Dallagnol em vídeo publicado em suas redes sociais após o resultado das eleições, no domingo.

Moro e Dallagnol declararam, desde o início da “lava jato”, que se inspiravam na “mãos limpas”. Realmente há semelhanças entre as operações. E ambas varreram políticos tradicionais, gerando a ascensão de líderes de direita que se vendiam como outsiders — o magnata Silvio Berlusconi, na Itália, e Jair Bolsonaro, que vestiu roupagem de candidato antissistema, embora fosse parlamentar, de atuação inexpressiva, havia 29 anos. Tal como os brasileiros, os procuradores italianos ingressaram na política após o fim do caso.

Diferentemente de Moro e Dallagnol, porém, os operadores da “mãos limpas” não apoiaram Berlusconi, afirma a pesquisadora Amanda Evelyn, doutora em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro com a tese Entre parábolas e teoremas: uma sociologia política de Lava Jato e Mani Pulite.

“Se Moro e Dallagnol decidiram se aliar politicamente a Bolsonaro, os procuradores italianos Gherardo Colombo, Piercamillo Davigo e Antonio Di Pietro sempre se mantiveram na oposição a Berlusconi apesar de terem posicionamentos políticos diferentes. Davigo e Di Pietro estão mais à direita e Colombo, mais à esquerda. Os três falaram disso em muitas ocasiões e como nunca teria sido um obstáculo para o trabalho”, explica Amanda, que é pesquisadora de pós-doutorado do Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo, e do Núcleo de Pesquisas em Direito e Ciências Sociais do Instituto de Estudos Sociais e Políticos, da Uerj.

Davigo e Di Pietro, lembra, foram convidados para fazer parte do primeiro governo de Berlusconi, mas negaram. Após deixar a magistratura (na Itália, promotores e juízes integram a mesma carreira), Di Pietro fundou em partido, o Itália dos Valores. Mesmo concordando com diversas das ideias do primeiro-ministro, ele se manteve na oposição.

“Essa oposição não era alimentada por um posicionamento político, até porque ideologicamente Di Pietro e Berlusconi convergiam, mas tinha relação com o fato de que Berlusconi havia sido investigado pela ‘mãos limpas’ e foi o articulador político do fim da operação, o que tornou crimes de corrupção mais difíceis de investigar”, aponta Amanda.

No Brasil, Moro e Dallagnol declararam apoio a Bolsonaro mesmo depois de ele ter sido diretamente responsável pelo enterro da “lava jato”, devido ao desmonte das instituições de combate à corrupção, como aponta o livro O fim da Lava-Jato: Como a atuação de Bolsonaro, Lula e Moro enterrou a maior e mais controversa investigação do Brasil (GloboLivros), dos jornalistas Aguirre Talento e Bela Megale. Os dois apontaram os retrocessos na área promovidos pelo atual governo em diversas ocasiões.

O ex-juiz viu a atuação de Bolsonaro de perto. Ele deixou o Ministério da Justiça e Segurança Pública afirmando que Bolsonaro queria interferir na Polícia Federal para proteger seus filhos e aliados. Moro ressaltou que, nos governos Lula e Dilma Rousseff, não houve tentativas de atrapalhar as investigações de corrupção.

Após o ex-juiz deixar a gestão Bolsonaro, Dallagnol criticou, em entrevista à revista Veja, a “falta de apoio devido à pauta anticorrupção”. “O eventual uso do aparelho judiciário para proteger amigos políticos ou para perseguir inimigos políticos é algo típico de regimes autoritários, de ditaduras, e põe em xeque qualquer investigação contra pessoa poderosa”, disse o ex-procurador.

Procurados pela ConJur, Sergio Moro e Deltan Dallagnol afirmaram que não iriam se manifestar sobre o apoio dado a Jair Bolsonaro.

Caminhos diferentes
A atuação política dos procuradores da ‘mãos limpas’ é diferente da dos atores da “lava jato”, diz Amanda Evelyn. Ela ressalta que Gherardo Colombo, Piercamillo Davigo e Antonio Di Pietro se envolveram com questões políticas, mas buscaram não se aliar a políticos que foram fundamentais para o fim da operação. “A agenda política dos três gira em torno da noção de legalidade que se opõe a práticas corruptas e mafiosas e defende o fortalecimento do Estado”.

Antes mesmo da “mãos limpas”, os procuradores italianos faziam parte de movimentos anticorrupção na sociedade civil. Di Pietro foi para a política partidária. Colombo fundou uma organização não governamental chamada Sobre as regras, que promove um trabalho educativo sobre a importância da lei nas escolas e instituições. Por sua vez, Davigo ficou na magistratura até ser aposentado por idade e chegou ao Conselho Superior da Magistratura, que é o órgão de governança das carreiras jurídicas italianas.

“Quanto a Moro e Dallagnol, há o componente anticorrupção, mas a defesa das instituições de controle não parece ter grande protagonismo, ao menos nesse momento. Mesmo tendo criticado Bolsonaro e o culpabilizado pelo fim da ‘lava jato’, ambos preferiram aderir a ele. A atuação no Congresso, uma vez que eles foram eleitos, vai tornar a agenda deles mais evidente”, analisa a pesquisadora.

Comparações impróprias
Com o objetivo de legitimar sua atuação na “lava jato”, Sergio Moro e Deltan Dallagnol têm o hábito de fazer comparações inapropriadas, não apenas com a “mãos limpas”, mas também com práticas dos EUA, destaca Fabio de Sa e Silva, professor de Estudos Internacionais e Estudos Brasileiros na Universidade de Oklahoma e estudioso do lavajatismo. Para ele, isso é uma manifestação do complexo de vira-lata, da ideia de que o Brasil precisa importar modelos porque não é um país desenvolvido.

“Como já foi apontado por outras pessoas, a Itália tinha um sistema diferente do Brasil em matéria de persecução criminal, não sendo cabível, em princípio, tentar replicar o modelo das ‘mãos limpas’ no país. Algo semelhante ocorre com os EUA, onde eles [Moro e Dallagnol] dizem não haver impunidade — e que teríamos que copiar —, mas onde, em geral, pouquíssimos casos são julgados, e corruptos quase nunca são condenados e presos”, afirma Sa e Silva.

Como exemplos, ele cita os escândalos da compra de vagas em universidades e da crise dos opioides. Nos dois casos, a maioria dos acusados fizeram acordos com a Justiça e pagaram multas em troca de não serem presos.

Apoio após críticas
Sergio Moro aceitou o convite para assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública do governo Jair Bolsonaro logo após este se eleger presidente em 2018. Bolsonaro garantiu que o ex-juiz “teria liberdade total” e “carta branca” para combater a corrupção e o crime organizado.

Desde o começo do governo, contudo, o presidente impôs limites às medidas de Moro. Ele barrou a indicação da cientista política Ilona Szabó para o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e apoiou a volta do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que havia sido transferido para o Ministério da Justiça e Segurança Pública, para o Ministério da Economia (posteriormente, o órgão foi alocado no Banco Central).

O presidente também não consultou o ex-juiz ao nomear Augusto Aras procurador-geral da República, ignorando a lista tríplice da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Além disso, ignorou os apelos de Moro e não vetou a criação do juiz das garantias, incluído na Lei “anticrime” (Lei 13.694/2019) — principal projeto do ministro — pelo Congresso.

Os desentendimentos se intensificaram quando o presidente quis substituir o então superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro, Ricardo Saadi, pelo delegado Alexandre Saraiva. Na ocasião, prevaleceu o nome indicado pelo Ministério da Justiça, Carlos Henrique Oliveira Souza. Depois, Bolsonaro demitiu o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, que havia atuado ao lado do juiz na “lava jato”. Isso fez Moro pedir demissão, alegando interferência do presidente em investigações.

Após fracassar em viabilizar uma candidatura à Presidência da República, Sergio Moro lançou-se a senador pelo Paraná. Na campanha, voltou a abraçar o bolsonarismo, mesmo após todas as críticas que lhe foram feitas pelo presidente.

A declaração de apoio a Bolsonaro, de acordo com Fabio de Sa e Silva, deixa claro que a retórica de Moro de combate à corrupção “sempre foi de fachada”. “Caso contrário, ele afirmaria a sua ‘independência’ — termo que, aliás, usou na campanha — em relação a um presidente que vive à sombra de rachadinhas e de práticas como o orçamento secreto.”

Em segundo lugar, evidencia que o ex-ministro da Justiça “se situa politicamente muito próximo a Bolsonaro e talvez sonhe em ser o herdeiro de Bolsonaro em futuras eleições presidenciais”, diz o professor. Por fim, aponta Sa e Silva, o endosso ao presidente no segundo turno ajuda a corroborar a suspeição do ex-juiz nos casos envolvendo Lula, conforme reconhecido pelo STF e pelo Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, indicando “motivações políticas nas condenações do ex-presidente” proferidas por ele quando era titular da 13ª Vara Federal de Curitiba.

Nessa mesma linha, Amanda Evelyn avalia que Sergio Moro, em sua carreira política, tem dificuldades de se descolar de Bolsonaro.

“Moro aparecia como possível candidato à Presidência da República, chegou a anunciar a candidatura, mas seus resultados não foram satisfatórios. Por outro lado, ao vincular seu opositor na corrida ao Senado — Álvaro Dias — ao PT, ele teve sucesso e foi eleito, mostrando que muitos eleitores convergiram no voto Moro-Bolsonaro. A pauta anticorrupção está presente na oposição ao PT, mas é esquecida no alinhamento ao atual presidente. Essa tática tem sido eficiente, resta saber até quando.”

Inspiração italiana
A operação “mãos limpas” foi deflagrada há 30 anos na Itália. Embora tenha desvendado um esquema de corrupção envolvendo políticos e empresários, a investigação não extinguiu a prática. Seu legado é majoritariamente negativo, pois estimulou a entrada de outsiders na política — que mostraram não ter práticas tão diferentes dos políticos “tradicionais”. E a “mãos limpas” inspirou a autoapelidada “lava jato” no Brasil, que igualmente promoveu abusos e desrespeitou o devido processo legal, segundo advogados.

Em 17 fevereiro de 1992, Mário Chiesa, diretor de um asilo de Milão filiado ao Partido Socialista Italiano, foi preso sob a acusação de achacar empresários em troca de suborno. De início, a detenção não gerou muito barulho e foi pouco noticiada. Ainda assim, o então primeiro-ministro Benito Craxi, também do PSI, foi a público criticar o aliado. Ao canal de televisão Tg3, o chefe de governo disse que Chiesa era um “ladrãozinho” que levantava suspeitas sobre um partido que nunca tivera um membro condenado por crimes contra a administração pública.

Irritado com as declarações de Craxi, Chiesa declarou aos procuradores que queria colaborar com as investigações e “esvaziar o saco” — ou seja, contar tudo o que sabia. E ele cumpriu sua promessa: revelou que o albergue que dirigia era usado havia 13 anos para captar propina para o PSI, explicou as fraudes na construção da linha de metrô de Milão e apontou superfaturamento na reforma do estádio San Siro para a Copa do Mundo de 1990. O volume de informações que forneceu aos investigadores foi tão grande que ele passou a ser chamado de “o Pavarotti dos delatores”.

A delação de Chiesa gerou um efeito dominó, e o número de colaboradores passou a crescer a cada dia. A operação, comandada pelo magistrado do Ministério Público Antonio Di Pietro, hipertrofiou-se e desvendou um amplo esquema de fraudes em obras públicas, doações de empresários a políticos em troca de favores e desvio de recursos de empresas estatais.

Mais de 5 mil pessoas foram investigadas no caso, e cerca de 900 foram presas em algum momento. Além disso, a operação levou à extinção legendas que dominavam a política, como PSI, Democracia Cristã, Partido Social-Democrata Italiano e Partido Liberal Italiano.

Mas a operação cresceu demais. Com a reputação manchada pelos métodos abusivos dos funcionários da Justiça, pelo menos seis acusados suicidaram-se. Os políticos, empresários e a população italiana em geral passaram a ficar incomodados com a operação, que foi perdendo apoio. Além disso, parlamentares aprovaram diversas leis para conter abusos.

As eleições subsequentes foram vencidas por um autoproclamado outsider, o magnata Silvio Berlusconi. Populista, ele se envolveu em vários escândalos nos nove anos ininterruptos que governou a Itália.

Itália x Brasil
No Brasil, atores da “lava jato” por diversas vezes deixaram claro que se inspiravam na mani pulite. Em artigo de 2004, o ex-juiz Sergio Moro elogia a operação. No texto, declara que as investigações na Itália foram um “momento extraordinário”.

Ao analisar a “mãos limpas”, Moro apontava que não é aceitável deter alguém para obter confissões. A prisão provisória só pode ser efetuada se seus requisitos estiverem presentes, ressalta. Contudo, uma vez feita a prisão, não há problema em buscar uma delação, opinava o ex-juiz federal.

“Caso isso ocorra, não há qualquer óbice moral em tentar-se obter do investigado ou do acusado uma confissão ou delação premiada, evidentemente sem a utilização de qualquer método interrogatório repudiado pelo Direito.”

Ele também diz que, em grandes investigações, é necessário usar a imprensa para “deslegitimar” os poderosos.

“Na verdade, é ingenuidade pensar que processos criminais eficazes contra figuras poderosas, como autoridades governamentais ou empresários, possam ser conduzidos normalmente, sem reações. Um Judiciário independente, tanto de pressões externas como internas, é condição necessária para suportar ações judiciais da espécie. Entretanto, a opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é também essencial para o êxito da ação judicial.”