O direito dos mais vulneráveis de sobreviver ao coronavírus

07/05/2020

24.03.2020

Por Paulo Sérgio Pinheiro, publicado originalmente no site da Comissão Arns

A Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, clamou que se colocassem os direitos humanos no centro da resposta ao coronavírus. Nada funcionará se não forem protegidas “pessoas de baixa renda, populações rurais isoladas, pessoas com condições de saúde pré-existentes, pessoas com deficiência e idosos que vivem sozinhos ou em instituições”.

A esses se somam, no Brasil, os 7 milhões de trabalhadores domésticos, mulheres na maioria, quatro milhões sem carteira assinada, 40 milhões de trabalhadores informais, 3,5 milhões na fila da Bolsa Família, os povos indígenas. Para esses, nenhuma política do governo. Ao contrário, o governo quer permitir que as empresas cortem pela metade os salários e a jornada de trabalho até o fim de 2020.

A pandemia escancara a violação, pelo Estado brasileiro, dos direitos econômicos e sociais. A começar pela concentração de renda e desigualdade, o Brasil em segundo lugar no mundo. Aqui, o 1% mais rico concentra 28,3% da renda total do país (no Catar, essa proporção é de 29%): um terço da renda está nas mãos dos mais ricos. Já os 10% mais ricos concentram 41,9% da renda total. A essa desigualdade se sobrepõe a desigualdade racial, que se abate sobre a população negra, hoje, aliás, a maioria.

As recomendações para o comportamento individual soam como dirigidas a outro planeta. Os brasileiros devem lavar as mãos regularmente com água e sabão. Mas com que água? Na população, 83,3% têm acesso a água tratada; mais da metade, 51,9%, têm coleta de esgoto, mas só 44,9% do esgoto é tratado.

Os idosos devem ficar em confinamento em casa. Mas em que casa? Há um déficit de 7% das moradias, ou, 220 mil imóveis. Famílias com até três salários mínimos dividem a mesma casa, morando em cortiços. Cerca de 11,4 milhões de pessoas vivem em 6.329 favelas nas grandes metrópoles do país, em ambientes superlotados e sem condições de fazer isolamento, comprar álcool gel ou máscaras, estocar comida ou trabalhar em casa.

Sem água, sabonete e álcool gel as populações em situação de rua em todo o Brasil – 30 mil pessoas em São Paulo, entre os quais 7 mil idosos – ficam ao largo das medidas de prevenção. “Lavamos as mãos nas poças quando chove”, disse um catador de papel.

O Covid-19 revela o estado de miséria ao qual foi relegado o sistema de saúde. No total, contando UTIs do SUS e particulares, há cerca de 47 mil leitos, mas dos 16 mil leitos do SUS, 95%, ou 15.200, estão ocupados. Não temos a menor ideia de quantos ventiladores de respiração existem. Há penúria total de máscaras e de álcool gel tanto para o pessoal médico como para a população.

Entre os mais miseráveis dos miseráveis no Brasil estão os 758 mil encarcerados em condições de promiscuidade, claramente insalubres, a terceira maior população encarcerada do mundo. Para evitar que a propagação do vírus nas prisões se torne uma catástrofe, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) pediu ao STF para serem libertados presos do grupo de maior risco. O STF negou o pedido, por 7 a 2, os votos contrários mesclando insensibilidade e crassa ignorância.

Para mitigar o impacto devastador da epidemia, o governo finalmente anunciou garantir 200 reais mensais para cerca de 38 milhões de profissionais autônomos por três meses. Não basta. Faria mais sentido, como se discute nas redes sociais, uma renda básica emergencial para os 77 milhões mais pobres com renda familiar de até três salários mínimos.

A pandemia encontra no Brasil, desigual e castigado por um desgoverno sem paralelo, espaço tragicamente fértil para sua propagação explosiva. Sem uma urgente transformação nas mentalidades das elites econômica e política no país, capazes de enfrentar as históricas injustiças sociais, as consequências se anunciam devastadoras.

É mais do que nunca urgente exigir uma reconfiguração na gestão da crise. As vozes da ciência, da sociedade civil crítica e alerta, desprezadas e atacadas nos últimos anos no país, são vitais para construir saídas. E, como sublinhou a Alta Comissária, os direitos humanos são nossa melhor ferramenta: não haverá saída sustentável ao caos econômico e social produzido pela pandemia se políticas públicas não forem logo implementadas, respeitando os princípios fundamentais, como a universalidade de direitos, a igualdade e a não discriminação.

Paulo Sérgio Pinheiro é integrante da Comissão Arns, cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos.