Violência Oculta

29/02/2016

Os históricos individuais, é preciso frisar, não justificam o crime. Só deixam claro que, antes de partir para a agressão física, essas pessoas foram vítimas em situações que costumam ser ignoradas pela sociedade. Pode não faltar comida ou dinheiro para a maioria, mas ninguém passa pela vida sem levar uns bons tabefes dela. O próprio nascimento, por exemplo, é considerado uma violência em si. “O medo e a criança nascem juntos”, afirmou o médico francês Frédérick Leboyer, famoso por descrever práticas que tornam a chegada ao mundo menos dolorosa.

A questão é que, se os efeitos do nascimento são perceptíveis e inevitáveis, fechamos os olhos para muito da violência oculta na sequência da nossa vida. O que dizer do motorista que buzina para o pedestre que ousa atravessar a rua lentamente? Ou do moço que dá aquela aspirada na saliva entre os dentes quando uma beldade cruza o seu caminho? Até dentro de casa, o lugar onde deveríamos encontrar o maior aconchego, agredimos e somos agredidos o tempo todo. Momentos que entram para o álbum de família podem ser marcados por ressentimentos. Crianças brigam por um brinquedo, e adultos ensinam a elas que, se levou, tem que bater de volta. Mães ameaçam seus rebentos em troca de “bom comportamento” – “Já para o banho, menino, se não eu te arrebento!”. Casais apelam para a chantagem psicológica em nome do matrimônio – “Você me destrói quando vai para o futebol e me deixa aqui sozinha”. Situações como essas são corriqueiras e podem parecer irrelevantes se comparadas ao que assistimos todos os dias no noticiário policial (não seriam, por sinal, certos noticiários extremamente agressivos?). Mas elas são também consideradas atos de violência pelos especialistas no assunto.

O primeiro ponto é saber o que estamos chamando, aqui, de violência. Como explica o doutor em sociologia Herbert Rodrigues, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo): “Trata-se de um conceito que muda de acordo com o tempo e o lugar onde estamos”. Não é preciso muito esforço para buscar um exemplo do que ele diz. Há poucos anos, dar palmadas nos filhos era um ato não só aceitável, como aconselhado por educadores. Hoje a atitude é considerada crime, assim como xingar ou humilhar a criança. Algo parecido aconteceu com os trotes universitários, com o bullying e até com a tolerância ao assédio moral no ambiente de trabalho.

Embora seja uma obra de ficção, a série de TV “Mad Men” funciona como um bom retrato das condições em que viviam os funcionários de uma agência de publicidade norte-americana nos anos 1960. Don Draper e os outros chefes do escritório não poupavam seus subalternos dos mais infames abusos. Principalmente as mulheres. É verdade que, hoje, os trabalhadores não vivem necessariamente em plena harmonia com a chefia. No entanto, as agressões, inclusive as verbais, podem ser denunciadas e resultar em processos trabalhistas.

Podemos dividir o conceito de violência em dois grupos. No primeiro, está aquela que é visível e de fácil percepção: a física, em que há emprego de força contra alguém. No outro está a simbólica ou passiva: quando há sofrimento “mais de natureza emocional”, como conta o fundador do M. K. Gandhi Institute for Nonviolence, Arun Gandhi, sobre um exercício que seu avô, o lendário líder indiano Mahatma Gandhi, realizou com ele na infância. Tal violência ocorre sempre que alguém é privado de suas necessidades, de seus direitos. Pode ser subdividida em diversas categorias. Uma delas é a violência de estado. Um exemplo: quando um cidadão é privado do seu direito ao acesso à saúde pública. Já o chute que o pastor da igreja Universal do Reino de Deus deu na imagem de Nossa Senhora, em 1995, é considerado um ato de violência cultural contra os católicos. E a proibição de algum festejo ou ritual típico também pode ser qualificada violência cultural. Em qualquer um dos casos, a agressão desencadeia sentimentos iguais ou muito semelhantes aos causados por um safanão: raiva, tristeza, medo, entre outros… E raramente para por aí.

Além de causar traumas, estresse e infelicidade, a violência simbólica costuma desencadear casos de agressões físicas. “A agressão física acaba sendo a saída que as pessoas encontram para resolver seus conflitos que carecem de mediação”, diz o sociólogo Renan Theodoro de Oliveira, também pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência, da USP. Ele é autor da dissertação de mestrado defendida no início do ano e intitulada “Banalidades e brigas de bar: Estudo sobre conflitos interpessoais com desfechos fatais”. Para o trabalho, Renan analisou trinta boletins de ocorrência (entre eles o registro do crime que abre este TAB) e concluiu: “Qualificar o motivo como ‘banal’ é desconsiderá-lo e, como consequência, silenciar os autores da história em questão”.

A artista e perita criminal paraense Berna Reale tem uma opinião semelhante. Funcionária da perícia há seis anos, Berna conta que boa parte das ocorrências é resultado daquilo que ela e os colegas chamam de “cachimblema” (CAchaça, CHIfre e proBLEMAs, em geral, familiares). Ou seja, conflitos interpessoais não resolvidos de forma pacífica. Ela já notou também que, muitas vezes, o local onde ocorre um crime fatal já foi visitado diversas vezes pelos peritos anteriormente. “A história vai se agravando, agravando, até que acaba em tapa, tiro e morte”, diz. Por esse motivo, Berna propôs a criação de uma base de dados para esmiuçar casos de homicídio de mulheres. A ideia é que os peritos alimentem o sistema com informações detalhadas que permitam entender melhor o que leva ao assassinato.

Violência é um tema importante na vida de Berna Reale. Sua arte é pautada pelo assunto. Uma de suas obras mais famosas, “Quando Todos Calam”, trata da vulnerabilidade do indivíduo quando o coletivo o ignora. Para realizar a performance, a artista ficou nua, com vísceras bovinas sobre o ventre, deitada em uma mesa à céu aberto na região do Mercado Ver o Peso, em Belém (PA), rodeada por urubus. “A ausência e o silêncio diante de uma agressão também são uma forma de violência”, diz.

No ano passado, além de representar o Brasil na 56ª Bienal de Veneza, ela fez parte do 34º Panorama da Arte Brasileira, no MAM (Museu de Arte Moderna), em São Paulo. Para a exposição paulista, preparou uma instalação que remetia a uma pista de dança. No entanto, as luzes eram sirenes de viaturas e o som se misturava a gravações reais de rádios da polícia. Com sua arte, Berna também já tratou do assédio cotidiano contra mulheres, da corrupção, da pobreza e da polêmica entre religião e sexualidade. Todas formas de violência. Por ironia do destino, ela mesma agora é personagem de um episódio de agressão. No último dia 18, denunciou à imprensa e nas redes sociais a briga que teve com o diretor do Instituto de Criminalística de Belém, onde trabalha. A paraense conta que o chefe a colocou contra a parede e a ameaçou dizendo que iria mostrar como respeitá-lo.

Descrita na década de 1960 pelo americano Marshall Rosenberg, uma técnica chamada CNV (Comunicação Não Violenta) se propõe a ser uma espécie de antídoto para a violência passiva. Nos últimos anos, tem ganhado adeptos. As inquietações com o tema surgiram ainda na infância, quando Rosenberg mudou-se com a família para um bairro muito violento de Detroit, nos Estados Unidos. Duas semanas depois, uma briga por motivos raciais os obrigou a ficarem trancados durante três dias em casa. Enquanto isso, mais de quarenta pessoas foram mortas na região. Dali para frente, ele passou a observar o que motivava a violência e o que era capaz de manter um indivíduo pacífico. “Embora possamos não considerar ‘violenta’ a maneira como falamos, nossas palavras não raro induzem à mágoa e à dor, seja para os outros, seja para nós mesmos”, escreveu em seu livro “Comunicação Não Violenta – Técnicas para Aprimorar Relacionamentos Pessoais e Profissionais”.

Baseada na promoção da empatia, a CNV ensina a fazer uma faxina na forma como expressamos nossos sentimentos e pedimos o que precisamos aos outros. Ficam fora os julgamentos, a culpa e a vitimização. Para isso, Rosenberg descreveu quatro principais “passos”: observar sem avaliar ou julgar; identificar os sentimentos envolvidos no conflito; assumir a responsabilidade pelos próprios sentimentos; e fazer pedidos de forma clara e objetiva. A ideia é que os envolvidos em um relacionamento problemático – ou, pelo menos, um deles – tente identificar quais são as necessidades de cada um e, então, lide com elas de forma honesta. É o que faz a namorada ao tentar entender por que o namorado se incomoda com seu batom vermelho, no vídeo “No Amor”. Na mesma cena, o homem também se comporta de acordo com a CNV ao ser honesto e assumir que sente ciúme e insegurança.

Rosenberg dedicou sua vida à promoção da paz. Participou de importantes mediações de conflitos em áreas delicadas, como regiões da África e do Oriente Médio, e morreu no ano passado. Deixou um bom legado. Além de livros, no Youtube há vídeos de suas palestras e seminários. Neles, o norte-americano dá diversos exemplos de como a CNV pode mudar a forma como as pessoas se relacionam. Tem a história de uma mulher que não gostava de fazer o jantar para a família. “Detesto do fundo da alma”, disse a moça, que encarava a tarefa como uma obrigação incontestável. Depois do seminário, anunciou à família que não era mais responsável pela cozinha. Três semanas depois, um dos filhos dela fez a seguinte afirmação a Rosenberg: “Graças a Deus! (…) Talvez ela finalmente pare de reclamar durante as refeições!”.

A comunicação não violenta, às vezes, soa auto-ajuda. Mas quem mergulha na empreitada de levar uma vida mais pacífica relata os benefícios. O carioca Allan Redlich Santos, 36, conta que a técnica mudou a forma como ele e a mulher se relacionam com a filha, hoje com 5 anos. Quando a menina era ainda um bebê, por volta dos dois anos, entrou numa fase comum às crianças da idade: a da birra. Negava-se a atender os pedidos dos pais ou a seguir uma rotina. O simples “Vamos tomar banho, filha?” era capaz de desencadear um caos, com choros, gritos, cansaço e muita, muita frustração.

“Vivíamos em um estado de tensão permanente. Eu chegava em casa e encontrava minha mulher destruída emocionalmente, muito culpada e sem saber como agir. Não chegamos a bater em nossa filha, mas acabávamos partindo para a ameaça, disputa e outras formas de violência que nunca aprovamos e acabavam sendo o último recurso para resolver o problema”, afirma. Foi então que, na internet, eles descobriram a técnica desenvolvida por Rosenberg. Fizeram um treinamento e, aos poucos, passaram a aplicar a CNV dentro de casa. “Começamos a tentar identificar o que nossa filha estava sentindo nos momentos de conflito e, ao mesmo tempo, o que nós sentíamos.” Hoje, diz, vivem em paz.

Embora os treinamentos sejam curtos, não é de uma hora para outra que se aprende a usar CNV com naturalidade. Antes de gravar as cenas para os vídeos que fazem parte deste TAB, os atores Luciana Caruso e Wagner Molina receberam uma rápida explicação sobre a técnica e os roteiros escritos em duas versões: na forma convencional (violenta) e na forma compassiva, essa com as instruções in loco da coach e facilitadora de CNV Carolina Nalon. A filmagem da primeira versão foi fácil. Já a segunda precisou ser repetida muitas vezes. “Isso não parece real. Ninguém fala assim”, contaram os atores. É uma mostra de que não temos muitas referências de comunicação que não sejam pautadas pelo julgamento, culpa, ameaça…

A Polícia Militar do Rio de Janeiro resolveu enfrentar o desafio de praticar a CNV. Há quase um ano, policiais das UPP (Unidades de Polícia Pacificadora) estão recebendo instruções baseadas na técnica. “Policiais de UPP atuam em condições muito delicadas”, diz a fonoaudióloga Mônica Azzaritti, responsável pelo treinamento. “Estão em áreas comandadas pelo crime, são hostilizados pela população diariamente e, ao mesmo tempo, têm de lidar com os cidadãos e seus problemas triviais.” Por esse motivo, o coordenador da Polícia Pacificadora, Coronel Luis Claudio Laviano, encomendou um treinamento específico a Mônica.

Em duas horas, a especialista promete transformar os policiais em príncipes. Na prática, não funciona bem assim, claro. Mas é surpreendente como acabam receptivos à técnica. O primeiro desafio da fonoaudióloga é desarmar emocionalmente os policiais. Eles costumam chegar para o seminário cansados, estressados e com a tendência a achar tudo aquilo perda de tempo. “Por isso fiz adaptações para tornar o conteúdo mais próximo à realidade deles”, afirma. Na aula aprendem que, antes do pé na porta e do dedo do gatilho, quase sempre dá para bater um papinho. Mônica ensina, por exemplo, a pedir – e não mandar – que um morador da comunidade abra a mochila para ser revistada. E mostra como é eficiente informar para os cidadãos abordados qual o objetivo da ação e por que estão ali. Os policiais aprendem, portanto, a importância da comunicação para a conquista de uma sociedade mais pacífica. Afinal, se tem alguém que não pode banalizar a violência – seja ela oculta ou não – é quem trabalha para contê-la.

Uol Tab (nº 62) – Giuliana Bergamo

Fonte: http://goo.gl/2xq04X