Criminalidade Violenta, Estado de Direito e Controle Social

Em pesquisa concluída, observou-se que, no Brasil, as políticas de segurança e justiça implementadas pelos governos estaduais, após a reconstrução da normalidade democrática, não diferem daquelas implementadas pelo regime autoritário (1964-85). Os resultados da pesquisa buscaram elencar as possíveis causas explicativas dessa herança autoritária. O desdobramento da pesquisa resultou em cumprimento de um programa de pós-doutoramento no exterior (Paris/France) com vistas à atualização bibliográfica e ao reconhecimento do estado da arte da pesquisa em sociologia do crime e do controle social.

O projeto de pesquisa “O sistema de justiça criminal no Brasil, 1970-1990” desenvolvido entre os anos 1987-90, no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e no Nücleo de Estudos da Violência, teve por objeto uma análise da criminalidade urbana no Brasil e das formas de controle repressivo da ordem pública. Seus resultados permitiram elencar os principais dilemas e desafios que se colocam ao controle da ordem pública nos estritos termos de um Estado democrático de Direito, conforme se relatou anteriormente.

Impõe-se retirar o debate sobre a criminalidade urbana e suas formas de contenção desse campo onde ele se confinou e vem se confinando. Trata-se, por conseguinte, de problematizar a “demanda por ordem” que se encontra presentemente nas falas do cidadão comum e das autoridades, falas frequentemente veiculadas pela imprens escrita e pela mídia eletrônica e que inclusive não se encontra ausente do debate acadêmico e da produção de conhecimento científico. Ao problematizá-la está-se, em verdade,liberando-as de suas raízes conservadoras e liberais que de regra inspiram e influenciam políticas públicas penais. Um propósito dessa ordem reclama uma perspectiva teórico-metodológica que amplie o escopo da análise para além dos estreitos limites ditados pelas instituições de controle social e seu modo de funcionamento. Um empreendimento dessa natureza supõe como objetivos:

i) Pensar o estatuto do controle social na contemporaneidade. O controle social, algo mais amplo do que o controle da ordem pública, parece ter esgotado, na contemporaneidade, suas funções e modelos tradicionais. Por um lado, os mecanismos de pressão social sobre o comportamento dos indivíduos, que operavam sobretudo na esfera da modalidade pública e privada, não parecem mais suscitar nem o sentimento de medo, sequer o de angústia diante das possibilidades, sempre abertas, de violações das normas sociais. É como se imperasse uma sorte de dissociação entre as imposições morais e as práticas sociais.É como se imperasse uma sorte de dissociação entre as imposições morais e as práticas sociais. Por outro lado, as éticas vocacionais, muitas delas dotadas de forte inspiração religiosa, que no passado asseguravam o represamento das pulsões e do desejo não mais parecem mecanismos sólidos para conter os conflitos dos indivíduos entre si, dos indivíduos com a sociedade e dos indivíduos com o Estado. Está-se em plena era das paixões, sem que quaisquer interditos ou freios morais, mesmo quando existentes, consigam objetivar a experiência social. Ao contrário, se os mecanismos de controle social produzem efeitos, esses são os de obetivação das diferenças e das desigualdades, a manutenção das assimetrias, a preservação das distâncias e das hierarquias.Pretende-se explorar essa perspectiva a partir da análise do sentimento de medo e insegurança que parece ter tomado de assalto o “espírito” do cidadão comum. Esta perspectiva conduz a um segundo objetivo, qual seja:

ii) Pensar a complexa problemática do controle social a partir da sociedade. Essa problemática não se encerra no âmbito dos aparelhos repressivos do Estado. Com isto, a crítica e problematização da “demanda por ordem”sofre um deslocamento em seu âmbito de referência e reflexão: do Estado para a sociedade. Tal perspectiva requer pensar as formas de interação e sociabilidade em emergência, quer entre as classes populares, quer entre as demais classes sociais, bem como as modalidades de socialização, que informam o comportamento sobretudo dos jovens na sociedade contemporânea e que fomentam variadas interpretações acerca do uso das normas e de eficácia, prática e simbólica. Aqui, o “paradigma” de análise reside em compreender o significado do crime organizado, em particular de uma de suas modalidades mais emblemáticas da produção da violência na contemporaneidade – o narcotráfico – modo pelo qual se cogita abordar uma problemática emergente na literatura especializada: a das relações entre “controle social, sociedade de risco e os novos ilegalismos no mundo contemporâneo”. Por sua vez, o tratamento desta perspectiva enseja um terceiro e último objetivo:

iii) Pensar o estatuto do Estado no controle da ordem pública. O papel do Estado no controle dos comportamentos sociais e no controle da ordem pública não pode mais ser examinado em termos de eficácia/fracasso. Dahrendorf afirma, no ensaio citado, que um dos problemas fundamentais da sociedade contemporânea é que o controle da ordem pública é inspirado em Locke e Rousseua, porém, ao implementá-lo, essa mesma sociedade se encontra face à face e se identifica com o Estado leviatã de Hobbes. Com isso, creio, o sociólogo liberal está fazendo menção ao fato de que o controle da criminalidade se espreme entre duas forças antagônicas, por um lado, a anarquia social decorrente de propostas irrealistas inspiradas em concepções messiânicas de justiça social; por outro lado, o autoritarismo, inspirador de propostas que supõem desprezo, suspensão ou violação de direitos individuais. Ora, impõe-se colocar a questão fora desses termos dicotômicos. É preciso problematizar a própria natureza, perfil e funções do Estado na contemporaneidade, o que escapa certamente de suas funções convencionais no modelo contratual de organização societária. Como vêm mostrando vários analistas, cabe considerar, na atualidade, que o Estado é cada vez mais caracterizado pelo pluralismo jurídico e pela coexistência de mais de uma ordem jurídica no mesmo espaço geopolítico, o que contraria clássicas análises sobre o papel e funções do Estado moderno. Essa perspectiva conduz a indagar: em que medida o pluralismo jurídico, cujos contornos começam a ser detectados, bem como as formas emergentes de contratualidade não estariam ao promoverem mudanças no diagrama liberal – incidido sobre tradicionais e convencionais concepções de responsabilidade penal centrada no indivíduo, pouco compatíveis com a emergência e generalização do crime organizado? Neste tópico, o “paradigma”de análise será representado pelo exame de um processo em curso: a privatização dos serviços de segurança, seja dos serviços de vigilância policial, seja a das prisões cujo debate marcha com certa intensidade. Sob essa ética, cuida-se e acrescentar à análise um dado novo: a tradicional indistinção entre as esferas pública e privada da existência social, uma das mais destacadas características da sociedade brasileira, é acentuada por um progressivo processo de privatização dos serviços públicos de segurança.

Resultado:

ADORNO, S. Criminalidade violenta, Estado de Direito e controle social. Relatório de pesquisa. Programa de Pós-Doutorado, Paris/França, 1994-1995. São Paulo, 1995, mimeo. 72p. (CNPq).

Ficha Técnica

Realizada entre: 1994 - 1995
Financiador(es): Centre de Recherches Sociologiques sur le Droit et les Institutions Pénales/CESDIP, Groupe Européen de Recherches sur les Normativités/GERN.
Coordenadores: Sérgio Adorno