NEV na mídia | Monitor da Violência: Uso inadequado e abusivo de força letal: para cada policial morto, há 34 pessoas mortas por policiais no país
23/05/2022
Os pesquisadores ligados ao NEV Ariadne Natal, LEonardo Ostronoff e Sergio Grossi produziram análise sobre o boletim de maio/2022 do “Monitor da Violência”, projeto conjunto do NEV com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública: Uso inadequado e abusivo de força letal: para cada policial morto, há 34 pessoas mortas por policiais no país Por Ariadne […]
Os pesquisadores ligados ao NEV Ariadne Natal, LEonardo Ostronoff e Sergio Grossi produziram análise sobre o boletim de maio/2022 do “Monitor da Violência”, projeto conjunto do NEV com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública:
Uso inadequado e abusivo de força letal: para cada policial morto, há 34 pessoas mortas por policiais no país
Por Ariadne Natal, Leonardo Ostronoff e Sergio Grossi, NEV-USP
(com atualizações posteriores)
Link original (grátis): https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2022/05/04/uso-inadequado-e-abusivo-de-forca-letal-para-cada-policial-morto-ha-34-pessoas-mortas-por-policiais-no-pais.ghtml
Arte: Wagner Magalhães/g1
Dados do Monitor da Violência do g1 informam que ao menos 6,1 mil pessoas foram mortas pelas polícias estaduais brasileiras no ano de 2021. Isto equivale a uma taxa de 2.9 mortes a cada 100 mil habitantes. Tratam-se de números altíssimos, preocupantes e que mantêm as polícias brasileiras entre as mais violentas e letais do mundo, ao lado de países como Filipinas e Venezuela.
Entre as vítimas da letalidade policial cuja identificação racial foi registrada, ao menos 81,5% são negros (pretos e pardos), apesar destes representarem apenas 56% da população brasileira. Isto indica que negros são mortos de maneira desproporcional, evidenciando o carater racial deste tipo de ação, um reflexo do racismo estrutural onipresente na sociedade brasileira.
Os dados indicam ainda que mais de 97% das vítimas foram mortas em ações de policiais militares, embora eles representem 81% dos efetivos estaduais ante 19% de policiais civis. De certa forma, é esperado que a maior parte das ações de uso da força letal sejam resultado da ação de policiais militares, visto que estas são as instituições responsáveis pela prevenção e patrulhamento ostensivo cotidiano.
Ainda assim, tal sobrerrepresentação reforça a ideia de que existe uma tendência ao emprego de métodos coercitivos e uso da força por estas instituições policiais justamente em razão da adoção de um modelo de policiamento com inspiração belicista.
Outro dado importante é em que situações as mortes ocorrem. Por via de regra, os policiais usaram violência letal principalmente durante o horário de trabalho, posto que 96% das vítimas de letalidade policial são mortas por agentes em serviço. Todavia, os policiais foram vitimizados majoritariamente durante os períodos de folga, visto que 76,5% das mortes de policiais foram registradas fora de serviço.
Temos então a constatação de que policiais matam principalmente em serviço, mas morrem mais fora de serviço. Isto ocorre principalmente porque, durante a folga, muitos policiais exercem atividades paralelas irregulares, como seguranças privados para complementar renda, bem como porque, muitas vezes, eles têm o ímpeto de reagir a assaltos ou ameaças. Contudo, nestas situações, eles se encontram em maior vulnerabilidade física em razão da ausência de equipamentos de proteção e de apoio operacional adequados, o que implica em maior risco à vida.
Por fim, o dado que combina letalidade e vitimização policial apontou flagrante desproporção no uso da força letal pelas polícias brasileiras. Observamos uma razão de 1 policial morto para cada 34 vítimas da letalidade policial. Esta razão oferece elementos que indicam uso inadequado e abusivo da força letal.
Neste sentido, o argumento de que as polícias brasileiras apenas reagem de maneira proporcional ao risco que enfrentam não parece se sustentar nos dados que as próprias polícias produzem.
Uma boa notícia
Embora o retrato nacional seja ruim, os dados mais recentes trazem também algumas boas notícias. Uma excelente informação é que, na comparação entre 2020 e 2021, observamos uma queda no número de policiais mortos na ordem de 17%, o que equivale a 38 vidas poupadas.
Os dados de letalidade policial também trazem um alento. Em 2021, houve decréscimo de 4,5% em comparação com 2020.
Porém, infelizmente, ainda é muito cedo para comemorar, pois o Brasil permanece em um patamar alto de violência policial. Ao que parece, nós demos os primeiros passos para descer uma enorme montanha, mas é preciso ter em mente que ainda há muito a ser feito e, de fato, ainda estamos muito mais próximos do cume do que da base.
Outra questão que preocupa é que, a despeito das lacunas, os dados sobre o perfil racial das vítimas da letalidade policial sugerem que a queda registrada no último ano também apresenta um viés racial. Isto porque tal redução ocorreu sobretudo dentre as vítimas identificadas como brancas que passaram de 21% para 18,5% do total das mortes, ao passo em que as vítimas negras subiram de 79% para 81,5% do total das pessoas mortas pela polícia.
A queda e a pandemia
As razões para a queda nacional geral de letalidade ainda precisam ser melhor explicadas. É possível cogitar que, ao menos em parte, a pandemia de covid-19 tenha contribuído em alguma medida para este cenário, uma vez que a redução aqui registrada é concomitante com o período mais grave da crise sanitária.
A necessidade de praticar o isolamento social e as novas modalidades de trabalho remoto afetaram a circulação de pessoas pelas cidades. Tal conjuntura, por sua vez, pode ter diminuído a oportunidade para ocorrências de diversas modalidades de crimes violentos, o que teria impacto sobre a letalidade policial.
Tal explicação, entretanto, deve ser considerada parcial e limitada, pois, no plano estadual, não observamos apenas quedas. Muito pelo contrário: diversos estados apresentam alta considerável, como veremos a seguir.
A heterogeneidade dos cenários estaduais
Até aqui, olhamos para o que acontece no Brasil como um todo, mas é preciso sempre considerar que tanto dinâmicas criminais quanto à atuação policial são influenciadas sobretudo por contextos locais. Quando somamos dados de letalidade policial dos estados, estamos, na verdade, sobrepondo a atuação de instituições policiais muito diferentes e que trabalham dentro de condições e ambientes diversos.
Em nível estadual, as tendências não são homogêneas e refletem dinâmicas e realidades muito distintas. Levando em conta números absolutos, isto é, considerando o total de pessoas mortas pela polícia, os estados com mais vítimas são Rio de Janeiro (1.356), Bahia (1.010), Goiás (576), São Paulo (570), Pará (541) e Paraná (413).
Juntas, estas seis unidades da federação são responsáveis por mais de 70% das mortes pela polícia no país, indicando considerável concentração. É sempre importante olhar para o que se passa nestes estados, pois qualquer alteração em suas dinâmicas internas implica em um grande número de vidas salvas ou perdidas.
Já com relação à vitimização policial, os estados com números mais altos são, respectivamente, Rio de Janeiro (64), São Paulo (25), Bahia (13) e Pernambuco (12).
Contudo, focar apenas em números absolutos diante de estados com populações tão diferentes oculta uma importante parte da realidade. O que permite uma comparação efetiva em nível estadual são as taxas de pessoas mortas pelas polícias para cada 100 mil habitantes. Neste sentido, vemos que os estados com maior índice de mortos pela polícia são, respectivamente, Amapá (17.2), Sergipe (9), Goiás (8), Rio de Janeiro (7.8), Bahia (6.7) e Pará (6.2), todos com taxas muito acima da média nacional.
Sergipe e Amapá se sobressaem não apenas por terem as taxas mais altas, mas também pela grande desproporção na razão entre policiais por cidadãos mortos – 210 para 1 no Sergipe e 151 para 0 no Amapá, o que sinaliza excessos. O estado do Paraná também chama a atenção, com 140 mortos pela polícia para cada policial morto.
Estes estados preocupam ainda porque o números de pessoas mortas pelas polícias vem crescendo continuamente e de maneira muito acentuada a cada ano, desde o começo do monitoramento do g1. As razões para esta tendência de elevação continuada ainda carecem de explicações pormenorizadas, que devem levar em conta os contextos e políticas de segurança locais.
Já Rio de Janeiro, Bahia e Pará possuem um longo histórico de letalidade policial que infelizmente os mantém continuamente no topo do ranking quando se trata de vítimas de ações policiais. Na Bahia e no Pará, são 77 cidadãos mortos para cada policial assassinado. No Rio de Janeiro, a razão é de 22 para 1, indicando o quanto a política de segurança fluminense é devastadora e letal também para os policiais.
Quando consideramos apenas as variações que se deram entre os anos de 2020 e 2021, os estados com maior crescimento são Mato Grosso do Sul (114%), Tocantins (56%), Amapá (37%), Rio Grande do Sul (27%) e Paraíba (21%). Interessante notar que são estados que se localizam em diferentes regiões do país, sinalizando que esta não é uma tendência regional.
Taxas de letalidade mais baixas
Embora pesquisadores tenham uma tendência natural de focar em locais onde os problemas se concentram, ou seja, onde as taxas de letalidade são mais altas ou apresentam crescimento, é sempre relevante mencionar também aqueles que apresentam números mais baixos.
Tratam-se de exemplos muito importantes pois revelam que, mesmo na difícil realidade brasileira, estratégias de controle da criminalidade podem e devem coadunar com menos mortes em decorrência de ações policiais.
Quando consideramos a variação entre 2020 e 2021, também observamos quedas nos números de pessoas mortas pelas polícias nos estados do Acre (58%), Rondônia (45%) e Roraima (44%), todos na região Norte do país, além do Distrito Federal (36,4%), no Centro-Oeste. Estes são estados que possuem números absolutos baixos, de maneira que pequenas variações implicam em considerável mudança percentual.
SP e o Programa Olho Vivo
Em quinto lugar nesta lista de redução, chama bastante a atenção o estado de São Paulo, o mais populoso da federação, que apresentou uma queda de 30% entre um ano e outro.
Uma das razões que pode ser atribuída a essa redução é o Programa Olho Vivo, que, dentre outras medidas, implementou um projeto piloto que consistiu na instalação das câmeras corporais em uniformes de policiais militares no estado.
Este projeto teve início em agosto de 2020, com a primeira fase na qual foram distribuídas cerca de 585 câmeras corporais para polícias de três batalhões da capital paulista e, posteriormente, em 2021, outras 2.500 câmeras foram distribuídas para 18 batalhões.
Outro dado muito positivo no estado é uma redução de 49% no número de policiais mortos, o que permite formular a hipótese de que as câmeras corporais favorecem tanto a diminuição das mortes causadas por policiais, quanto aumentam sua proteção e minimizando as chances de sua vitimização.
Embora o programa ainda esteja em implementação e tenha uma cobertura limitada, esta tem sido considerada uma política promissora para a segurança pública, tanto no sentido de diminuir a letalidade policial, quanto no sentido de aumentar a segurança de policiais.
Um esboço de futuro
Os dados coletados e publicados pelo Monitor da Violência cumprem um importante papel no sentido de garantir transparência e informar a sociedade a respeito de como o Brasil e cada estado da federação lidam com o bem mais precioso de cidadãos comuns e policiais: o direito à vida.
Como vimos acima, as dinâmicas e tendências de letalidade e a vitimização policial não são uma realidade dada e imutável. Pelo contrário, elas podem tanto ser impulsionadas e agravadas, quanto refreadas e controladas em relativos curtos espaços de tempo.
Por esta razão, é importante que as informações aqui apresentadas sejam utilizadas como ferramentas de pressão e de cobrança sobre as autoridades que têm o poder de mudar a realidade por meio de políticas públicas e direcionamento da atuação policial.
Ariadne Natal é pesquisadora de pós-doutorado no Peace Research Institute Frankfurt (PRIF) e pesquisadora associada do NEV-USP.
Leonardo Ostronoff é pesquisador do NEV-USP.
Sergio Grossi é pesquisador de pós-doutorado do NEV-USP e pesquisador visitante do Cambridge Institute of Criminology.