Nota do NEV/USP | Mortes e Segurança pública: os inadmissíveis índices de letalidade policial e de policiais no país

11/08/2023

O Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) monitora, desde os anos 1980, as dinâmicas de letalidade policial no Brasil: tanto os números e situações de mortes de civis por policiais, quanto mortes de policiais na ativa. É tendo em vista essa experiência acumulada que o Núcleo acompanha com extrema preocupação […]

O Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) monitora, desde os anos 1980, as dinâmicas de letalidade policial no Brasil: tanto os números e situações de mortes de civis por policiais, quanto mortes de policiais na ativa.

É tendo em vista essa experiência acumulada que o Núcleo acompanha com extrema preocupação as ocorrências recentes de inúmeras mortes em ações envolvendo policiais, em diversos estados brasileiros.

Embora as informações ainda sejam desencontradas e muitos fatos precisem de apuração, é certo que, no intervalo de poucos dias, ações em São Paulo, no Rio de Janeiro na Bahia produziram dezenas de mortes. Na cidade do Guarujá e região, em São Paulo, até o momento são contabilizadas 16 mortes de cidadãos nos três dias iniciais da Operação Escudo da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP), iniciada no dia 28 de julho, após a morte de um policial no dia 27.

Mesmo tendo em vista o inegável direito à segurança dos cidadãos e os complexos desafios envolvendo o combate ao assim chamado crime organizado na atualidade, não é possível considerar tal resultado como aceitável.  É inadmissível que as forças policiais ajam, ainda que respondendo a investidas criminosas, produzindo tantas mortes.

Casos de ataques a forças policiais que ensejaram violentas ações de suas forças, muitas vezes em forma de operações policiais em regiões periféricas, deixando rastros de morte, infelizmente não são novidade no país.

Tais operações em nada contribuem para a produção de um ambiente social mais seguro. Igualmente, não fortalecem a confiança da população nas forças da ordem, muito pelo contrário. Também não reduzem efetivamente a criminalidade, ou sequer o sentimento de insegurança presente na sociedade. Enfim, não contribuem nem para a segurança dos cidadãos nem dos próprios policiais.

Sem dúvida, é inaceitável que um policial, em cumprimento de sua função pública, seja alvejado e morto, como o ocorrido com um policial militar de São Paulo no último dia 27. Ainda assim, trata-se de situação de alta complexidade, que merece as devidas apurações e a necessária punição dos envolvidos.

Segundo informações da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP/SP), no ano de 2022, sete policiais morreram em serviço, sendo seis militares. O primeiro semestre de 2023, por sua vez, acumula quatro policiais mortos em serviço, sendo três militares. A reiterada ocorrência de mortes como essa demonstram que políticas de segurança pública, adotadas pelos mais diferentes governos, reiteradamente falharam em produzir um território minimamente seguro para todos.

Espera-se que as instituições públicas investiguem e julguem, a partir do devido processo legal, autor/es de ameaças, de ataques e de mortes. Inclusive de autoridades, como é o caso de agentes policiais. Essa é a diferença entre a justiça, que pune a partir da lei, de sua aplicação com rigor, e a vingança e o justiçamento, que, ao descartar as devidas mediações institucionais, atua desconsiderando o regulamento legal.

Atuar ao arrepio da lei é ainda mais grave quando os que agem são as próprias autoridades públicas, pois ao fazê-lo, colocam em xeque a confiança em todo sistema institucional de segurança e justiça. As polícias, ao tomarem para si a prerrogativa de fazer justiça com as próprias mãos, não só extrapolam suas atribuições legais, como também explicitam a descrença nas instituições das quais também são parte.

Práticas como essas, principalmente quando tomadas por autoridades públicas, contribuem para corroer junto ao público a crença e a confiança nas instituições e nas leis como instâncias legítimas para esclarecer e punir os crimes.

É preciso ressaltar a informação, divulgada pela imprensa, de que nem todos os policiais envolvidos nas ações, resultantes em mais de 10 mortes civis, portavam câmeras corporais – ou tinham câmeras corporais aptas a produzir gravações. As imagens produzidas por esses dispositivos seriam fundamentais como prova, para dissipar dúvidas sobre o que de fato aconteceu naquelas operações. O uso de câmeras corporais é uma das muitas inovações positivas adotadas pela polícia paulista nos últimos anos. Sua implementação, além de dar segurança jurídica aos policiais, muito contribuiu para a transparência, como também para atestar a retidão e lisura das ações policiais.

Não é possível normalizar as mortes no âmbito da segurança pública. O esclarecimento público de todos os fatos é passo essencial para garantir a confiança na ação policial e consequentemente no Estado Democrático de Direito e na própria Democracia.

O paradigma da “guerra”, que continua orientando inúmeras ações no âmbito da segurança pública no país, tem se mostrado totalmente deletério em termos de efetiva construção de uma sociedade pacificada e civilizada. E o uso eleitoral desse paradigma tem levado a uma degradação inédita da dinâmica política nacional.

Enfim, é inadmissível que autoridades, forças policiais e inclusive setores da sociedade considerem mortes no âmbito da segurança pública como uma espécie de destino incontornável de uma sociedade em perpétua guerra contra o crime.