NEV na mídia | REPSAL: As milícias na sala de jantar

23/11/2023

Leonardo Ostronoff, pesquisador associado ao NEV/USP, ofereceu uma contribuição ao blog internacional e bilíngue da Red de Estudios sobre Politica Subnacional en América Latina (REPSAL), grupo sediado no Peru dedicado a questões latinoamericanas. O Núcleo de Estudos de Políticas de Drogas, Violência e Direitos Humanos da Universidade Federal da Juiz de Fora (NEVIDH/UFJF), parceiro do […]

Leonardo Ostronoff, pesquisador associado ao NEV/USP, ofereceu uma contribuição ao blog internacional e bilíngue da Red de Estudios sobre Politica Subnacional en América Latina (REPSAL), grupo sediado no Peru dedicado a questões latinoamericanas.

O Núcleo de Estudos de Políticas de Drogas, Violência e Direitos Humanos da Universidade Federal da Juiz de Fora (NEVIDH/UFJF), parceiro do NEV/USP, é representado na rede pelos pesquisadores e professores Marta Mendes da Rocha e Marcelo Campos, e solicitou a Ostronoff uma contribuição atualizada para a compreensão dos fatos mais recentes no Rio de Janeiro, relacionados ao incêndio de ônibus em ações de grupos de crime organizado, e as medidas tomadas por autoridades para lidar com a situação.

Link original: https://sites.google.com/view/redsubnacional/blog/30102023-as-mil%C3%ADcias-na-sala-de-jantar

 

Matéria na Íntegra

No começo dos anos 2000, em visita ao Rio de Janeiro, pude conhecer um baile funk conhecido por “Castelo das Pedras” localizado na comunidade do Rio das Pedras. Estava acompanhado de amigas “nativas”, feministas e integrantes do maior partido de esquerda do Brasil. O destaque da noite foi a “segurança” do local, onde brigas e furtos não eram permitidos. De fato, a tranquilidade no baile existia, não havendo casos de violência visíveis. A sensação de segurança contrastava com o medo presente em outros locais da cidade.

Os anos se passaram, descobri que no Rio das Pedras desenvolveu-se uma das mais importantes milícias do RJ, que entre diversos negócios também exercia o de prostituição para turistas. Vieram os debates públicos, as denúncias, CPIs, Marcelo Freixo, família Bolsonaro, todo um universo que deixou explícito que as milícias são uma forma de crime organizado formada por dentro do Estado, tendo ligações com autoridades oficiais do estado do Rio de Janeiro. Bruno Paes Manso em seu livro A república das milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, mostrou todo esse processo com primazia, portanto, não vou retomar o debate já realizado, mas pensar através dele os últimos acontecimentos quanto ao tema.

No último dia 23 de outubro, em represália à morte de um dos líderes da maior milícia do estado em ação da Policia Civil na Zona Oeste do Rio de Janeiro, dezenas de ônibus foram incendiados em sete bairros, afetando o transporte de mais de um milhão de usuários, gerando um clima caótico na região. Episódio que é considerado o maior ataque das milícias no Rio de Janeiro até o presente. Incapacidade do Estado em impor a ordem? Falência do chamado monopólio legítimo da força pelo Estado? Na imprensa essas ideias tem sido recorrentes. Mas a questão que trago como contribuição ao debate é se já foi possível falar da segurança pública do Rio de Janeiro nesses termos, ou seja: existiria monopólio estatal da violência? De qual ordem estamos falando?

Em um mapa realizado pelo GENI/UFF é possível verificar o expressivo avanço das milícias na capital fluminense. Fato é que se já existiu uma política de segurança pública, seja qual for, ela falhou em deter o avanço das milícias. Ao contrário, essas organizações criminosas diversificaram ainda mais sua rede de negócios, relações políticas e territórios. Antes rivais do tráfico de drogas, hoje estão associadas às facções criminais nesse comércio, fato que gerou o termo “narcomilícia”. Porém, existe uma ligação em todo esse processo: a privatização da segurança. Nesse ponto, sim uma incapacidade dos governos cariocas em oferecer a chamada “sensação de segurança”, por sua vez, garantida por outras organizações como empresas privadas e milícias. Nesse vácuo do Estado, uma brecha para vender segurança, mercado que se formou no Brasil com bastante expressão nos últimos anos (Adorno y Dias 2014).

Outro ponto que deve ser destacado é o anúncio do governador Claúdio Castro, comemorando a morte de um líder das milícias como uma vitória do poder público. Tal comportamento expressa um paradigma punitivo (Alvarez 2013) na segurança pública, onde promove-se uma guerra contra o crime como norte das ações de governo. O que resulta disso é o reforço de um ciclo de violência e de um controle social perverso (Moraes 2005) sobre populações das periferias da cidade, em sua maioria, negros e pobres. O autoritarismo não se faz presente apenas no Rio de Janeiro, mas está implantado em toda sociedade brasileira (Pinheiro 1991), promovendo uma visão da segurança pública tal qual Castro demonstrou em sua declaração. Quando os agentes do Estado operam por meios ilegais, normalizando torturas e mortes como prática do trabalho policial – portanto, por fora dos controles legais – o próprio Estado se enfraquece (Soares 2000).

O problema das milícias no Rio de Janeiro depois do episódio do último dia 23 de outubro, subiu de nível. As milícias enfrentaram o poder público diretamente, afetando o direito de “ir e vir” da população. Mais do que isso, demonstraram a incapacidade das autoridades na “garantia da ordem” e a insuficiência das ações na segurança pública, pois as respostas oferecidas reproduzem uma lógica política dentro de uma visão punitiva que não tem sido bem sucedida através das últimas décadas. A milícia mostra que o problema não está somente em um inimigo externo contra o qual devemos travar uma cruzada, mas que está dentro de casa, sentado na sala de jantar. É preciso reinventar a política de segurança pública no Rio de Janeiro, pensar o funcionamento administrativo do Estado. Ora, se os governos procuram tanto uma batalha, estas seriam aquelas que poderiam ser travadas por excelência. Vejamos tais ações como os primeiros passos em um longo caminho para derrotar as milícias no Rio de Janeiro, ou pelo menos, para poder enfrentá-las com chances de êxito, tirando-as da sala de jantar.

Leonardo José Ostronoff é Pesquisador Associado do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.