Entrevista com pesquisador | Pesquisador Renan Theodoro de Oliveira explica sua tese, aprovada em 2022

27/03/2023

Renan Theodoro de Oliveira, que atua no Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP) há quase dez anos como pesquisador, obteve seu título de doutorado em Sociologia na Universidade de São Paulo em outubro de 2022, com a tese “Legitimidade da autoridade familiar: modos de poder parental no estudo longitudinal”. Sob a orientação do […]

Renan Theodoro de Oliveira, que atua no Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP) há quase dez anos como pesquisador, obteve seu título de doutorado em Sociologia na Universidade de São Paulo em outubro de 2022, com a tese “Legitimidade da autoridade familiar: modos de poder parental no estudo longitudinal”.

Sob a orientação do Prof. Sérgio Adorno, o trabalho de Renan foi desenvolvido ao longo de sua atuação na linha de pesquisa “Estudo da socialização legal em São Paulo”, que faz parte do projeto de pesquisa “Construindo a democracia no dia-a-dia” que o NEV/USP conduz com o fomento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), na qualidade de Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão.

Nesta entrevista, concedida pelo pesquisador à equipe do NEV/USP, ele explica suas investigações a respeito da legitimidade da autoridade familiar, à luz das pesquisas longitudinais coletadas com adolescentes da cidade de São Paulo, e explica a relação desse estudo com as iniciativas de estudos sobre legitimidade conduzidas no Núcleo.

A tese está disponível na biblioteca digital da USP e pode ser acessada também no site do NEV, na área de publicações (clique aqui).

(NEV/USP: Pesquisador, Renan Theodoro, em entrevista)

 

NEV/USP: Como foi a delimitação do tema de sua pesquisa de Doutorado?

Renan Theodoro: Eu queria entender a forma como pais, mães e responsáveis exercem autoridade diante dos filhos, se isso altera a forma como os filhos reconhecem a legitimidade dos pais. Entender a forma que lidam com os conflitos dentro de casa, imposição de regras, negociações de horários e de atividades. Ou seja, como a forma de exercer autoridade afeta os adolescentes e como eles vão entender essa autoridade como legítima.

Quando eu falo de “autoridade legítima”, digo “aquela autoridade que deve ser obedecida, aquela autoridade que merece atenção”, cujas determinações eu obedeço. Não porque eu esteja sendo forçado a obedecer, porque não há escolha, mas sim por acreditar que essa é a direção que deve ser seguida.

Trabalho com as formas que a autoridade pode ser exercida e com a questão do uso da força física para impor a autoridade, por exemplo, a violência doméstica, o convívio com formas mais brutas, agressivas do exercício da autoridade e como elas afetam a legitimidade das autoridades familiares.

Há uma literatura muito ampla mostrando a prevalência da violência familiar no contexto do exercício da autoridade e do exercício do poder parental, mas pouco se produziu sobre os efeitos das próprias figuras de autoridade. Geralmente, quando se pensa em efeitos da violência doméstica, pensa-se sobre efeitos futuros, de comportamento nas pessoas – principalmente na área da psicologia. Mas, como é uma tese desenvolvida junto ao departamento de sociologia da Universidade de São Paulo (USP), foi importante entender os impactos para a própria relação, para os vínculos familiares como pais e filhos ou mães, pais e filhos.

Essa tese existe porque faço parte de um estudo no NEV/USP chamado “Estudo da socialização legal”, o qual faz parte do projeto “Construindo a democracia no dia-a-dia”. Neste estudo, procura-se saber como pré-adolescentes e adolescentes entre 11 e 14 anos formam suas concepções sobre diferentes tipos de autoridade como professores, pais, inclusive, autoridades das leis e policiais. No trabalho, há uma série de questões feitas em um conjunto grande de adolescentes e, a partir desses acompanhamentos, foi decidido focar nas questões familiares.

 

NEV/USP: O que é a legitimidade da autoridade familiar?

Renan Theodoro: A legitimidade é uma disposição das pessoas em obedecer às autoridades mesmo quando não se concorda com a autoridade. Então, a autoridade legítima é aquela que mesmo quando, por exemplo, meu pai está me dando uma diretiva que eu não quero fazer, eu vou fazer, porque eu reconheço essa autoridade, porque a casa funciona melhor quando essa figura é ouvida, pois entendo que os pais cumprem esse papel.

Para ilustrar o conceito, no começo da tese, trago como epígrafe uma música do Gilberto Gil chamada “Roque Santeiro, o Rock”, da época em que eu estava nascendo, em 1985 aproximadamente: “Outrora, mera ameaça / Agora, exige o direito ao respeito dos pais”. Essa música retrata um momento de mudança nas relações familiares, em que a ameaça de uso da força, ou mesmo o uso da força pelos pais no contexto de exercício de autoridade passa a ser mais questionada pelos filhos.

Menciono também no trabalho uma fala do Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, de quando foi eleito pela primeira vez, em que ele conversa com uma plateia de sindicalistas e quer convencê-los de que a política exige negociação e usa um exemplo de relação de família: “antigamente, na minha época, bastava meu pai olhar pra mim que eu já ficava quieto. Hoje, não adianta o pai ameaçar, falar ou querer, os filhos não aceitam mais as coisas”.

Do ponto de vista sociológico, temos o conceito de autoridade, que é fundamental para entender como a sociedade se mantém e como determinadas ordens se mantêm e se alteram. As duas principais questões que eu trago no primeiro capítulo são: a primeira, demonstrar que a própria relação de autoridade está sujeita a mudanças no tempo histórico, então aquilo que se esperava há 100 anos não é a mesma coisa que se espera de uma autoridade nos tempos atuais.

Já a segunda questão é que essas transformações passam por uma racionalização, ou seja, pais e mães pensam muito mais nas consequência dos seus atos quando vão atuar com seus filhos. Não pensando só baseados em “meus pais faziam assim, eu vou continuar fazendo assim”, mas sim com um uso menor de artifícios agressivos para lidar com os filhos, uma ideia de “parentalidade cada vez mais racionalizada”.

O que quero dizer é que crianças, jovens e adolescentes aceitarem ou não a autoridade dos pais não significa a mesma coisa do que antes. É preciso compreender esse momento em que vivemos e fazer um esforço em consultar a literatura especializada para entender o debate do que é uma autoridade. Perceber que essa autoridade passe no percurso histórico por pelo menos três transformações: racionalização, civilização, democratização.

No caso da civilização, ressalta-se que a agressividade é cada vez mais controlada e, de maneira geral na sociedade, mesmo havendo níveis gritantes de violência, nas relações interpessoais a violência é cada vez menos aceita comparada com 100 anos atrás, por exemplo.

A estrutura familiar também passa por um processo de democratização, todos os processos que vemos na sociedade de forma mais ampla afetam a família de alguma maneira. Isso tudo me leva a criar a hipótese de que a família que recorre da força física terá uma legitimidade menor do que famílias que utilizam outros métodos pedagógicos.

 

NEV/USP: Uma parte de sua tese aprofunda as relações entre legitimidade, aceitação e obediência à autoridade familiar. Quais são os destaques para você?

Renan Theodoro: Nos dois primeiros capítulos da minha tese, tento compreender o conceito de autoridade e, depois, mais especificamente o conceito de legitimidade. Pois, entre as possibilidades para entender as relações de autoridade, escolhi a de legitimidade para entender melhor o conceito de aceitação ligado à autoridade.

Afinal, por que uma pessoa obedece uma autoridade? Ela poderia obedecer porque ela reconhece que aquela autoridade está intitulada a punir, por exemplo: “obedeço meu pai, porque ele vai me punir, me bater ou pôr de castigo, mas também eu obedeço o meu pai, porque reconheço uma autoridade reconhecida”.

Então, nesses capítulos iniciais trabalho com as duas ideias de legitimidade, a primeira de reconhecer o poder, assim como o de aceitá-lo. Depois disso, tentei entender como é o contexto mais próximo das relações de força física e autoridade.

Eu não poderia deixar de investigar como se deram os debates da Lei Menino Bernardo (também conhecida como Lei da Palmada)*, de 2014, mas que começou a tramitar uma década antes como projeto. Ela é interessante, porque é um debate público que liga esses dois conceitos: autoridade familiar e violência. Esse debate chega a setores da sociedade que se autodenominam conservadores, que dizem que o Estado não deve intervir na família de maneira alguma, ou seja, que os pais decidem as melhores maneiras de educar seus filhos e se eles vão usar da força física ou não é uma questão individual da família.

Por outro lado, há o debate, de que inclusive o NEV/USP participou ativamente, ao mostrar não só os efeitos negativos da violência no crescimento de crianças, mas também como isso é incompatível com as noções de democracia que sustentam o Estado brasileiro.

Então, é um processo de longo prazo cada vez haver mais limites externos à família. Não só ao mudar as sensibilidades, mas também ao mudar as legislações que controlam gradativamente mais o arbítrio da autoridade familiar.

*Lei 13.010/2014, que proíbe o uso de castigos físicos ou tratamentos cruéis ou degradantes na educação de crianças e adolescentes

 

NEV/USP: Sua pesquisa usou uma metodologia de levantamento de dados chamada longitudinal. Em que ela consiste?

Renan Theodoro: No NEV/USP temos um banco de dados em que entrevistamos os mesmos adolescentes por quatro anos, de 2016 a 2019, entre as idades de 11 e 14 anos. Esses jovens são da rede pública e privada de escolas do município de São Paulo, nascidos em 2005 – com um corte transversal em categorias de raça e cor, então é uma amostra bem representativa da divisão da sociedade de raça e cor. Além disso, é composta por metades iguais entre meninos e meninas, com vários segmentos socioeconômicos de rendas não alcançando um salário mínimo até famílias com renda acima de 10 salários mínimos. 

É uma pesquisa bem completa do ponto de vista sociodemográfico e é longitudinal, ou seja, possibilita o acompanhamento de mudanças nas opiniões dos adolescentes ao longo do tempo. É um material bem vasto com inúmeras publicações do NEV/USP a respeito nas plataformas do projeto, não apenas tratando a relação com a família, mas também com a polícia e escola.

A partir dos dados da pesquisa, observei para minha tese o conjunto de perguntas do estudo: “Seus pais pedem para você arrumar o quarto?”; “Seus pais colocam um horário para voltar pra casa, fazer lição de casa”; “Controlam o grupo com quem você anda?” – questões envolvendo regras domésticas que são comuns à faixa etária.

Em seguida fui entender a sequência dessas perguntas: “Quando você não obedece aos seus pais nessas regras o que acontece?”. Como possíveis respostas, estavam dispostas as opções “algumas vezes”, “poucas vezes”, “muitas vezes” para esses jovens.

Outras perguntas desse questionário eram “seus pais costumam te bater?”; “seus pais ameaçam te bater?”; “seus pais conversam sobre o ocorrido?”; “seus pais te colocam de castigo?” – que, por sua vez, expressam um conjunto de consequências que me permitiram analisar a forma como as autoridades eram reconhecidas e o grau de suas legitimidades.

 

NEV/USP: E quais são as respostas a respeito da autoridade parental?

Renan Theodoro: Na pesquisa foram identificados três padrões que eu chamei de modos de autoridade parental: como era a combinação de determinados castigos e imposição de autoridade.

O primeiro padrão é a autoridade que aplica alguma forma de responsabilização, como um castigo, mas sem o uso da força física. Por exemplo, ficar no quarto, sem ver televisão ou sem encontrar amigos. O segundo padrão seria de pais baterem ou ameaçarem bater, gritar ou xingar. Por fim, o terceiro seria aquele em que os pais apenas conversam – nem aplica o castigo físico nem adota outras consequências que o questionário foi capaz de captar.

Os respondentes das pesquisas, adolescentes de 11 a 14 anos, diziam que nesses casos do terceiro padrão não havia muitas regras dentro de casa, ao passo que o grupo dos adolescentes que indicaram uso de força física relataram brigas entre adultos. 

Sobre a distribuição das características sociodemográficas, adolescentes que disseram não ter muitas regras, por exemplo, vinham de perfil de alta renda, enquanto entre os respondentes de baixa renda constavam mais casos de violência ou incidentes de agressão física.

A partir disso, foi preciso entender como isso se relaciona com a aceitação da autoridade. Eu já havia participado de alguns artigos em que foram testadas em parte essas hipóteses de que quanto maior o uso da força física contra os filhos, menos os filhos legitimam a autoridade.

Mas eu não queria analisar pelo uso de mais ou menos força, o que eu queria saber era que a sociedade é múltipla, diferente e diversa e encontramos famílias de todos os tipos e entender a distribuição dos dados longitudinais nesses casos.

 

NEV/USP: O que acontece com esses dados ao longo do intervalo de tempo observado?

Renan Theodoro: A variável de autoridade dos pais, independente do que aconteça na casa, cai um pouquinho em todos os grupos que entrevistamos ao longo dos anos: quando eles tinham 12 anos, davam uma pontuação à autoridade dos pais e, aos 14 anos, isso já caía.

Os adolescentes lutam por sua autonomia e, conforme crescem, sentem-se mais à vontade para questionar a autoridade dos pais, então essa é uma queda mais ou menos natural. Agora, essa queda pode ser brusca, o afastamento pode ser entendido como uma não aceitação da autoridade, entre aqueles adolescentes que sofrem da violência doméstica. 

Nesse caso e nesse grupo, os pais que procuram reforçar sua autoridade usando a violência vão na contramão do que realmente pretendem fazer. Isso não combina com o tempo atual, as pessoas não aceitam que a autoridade faça o que ela quer de qualquer jeito, não aceitam apanhar para fazer o que a autoridade quer que seja feito.

O que eu não esperava encontrar, e que faz sentido após a análise dos dados, é que ao contrário do que setores conservadores da sociedade apontam, a autoridade não está sendo aniquilada.

No grupo em que os filhos fazem alguma coisa errada ou vão contra as regras e os pais apenas conversam, a ideia de autoridade não é tão presente. Algo que é presente no livro fundamental à sociologia, “Autoridade”, do sociólogo e historiador estadunidense Richard Sennett. Nele é apontado uma característica de carência de autoridade dentro da sociedade contemporânea. O que eu não esperava encontrar é que nos ambientes em que não eram colocadas consequências e os adolescentes não possuíam regras apresentavam os menores níveis de legitimidade.

Ao utilizar o livro de Richard Sennett como inspiração, esses casos mostram adolescentes que convivem com autoridades, mas não vivem com autoridade, ou seja, os pais que fingem que são autoridades, mas são outra coisa, tornando-se assim os menos legitimados.

Enquanto que no quadro geral, ao olhar para os grupos de adolescentes de São Paulo, percebe-se que as novas gerações não abdicam da figura de autoridade e nem negam a todo tempo a autoridade dos pais, mas elas não aceitam simplesmente a violência e o arbítrio. Por exemplo, os casos em que os pais aplicam consequências moderadas, sem o uso de força física, são aqueles em que se verifica maior legitimidade ao longo do tempo.

 

NEV/USP: O que se pode aprender a respeito da legitimidade da autoridade familiar?

Renan Theodoro: Ao olhar os dados da pesquisa, temos uma medida de legitimidade: o que a gente perguntou é um conjunto de questões baseadas em Marx Weber, fundante da sociologia, para debater sobre a legitimidade de autoridades na sociedade.

Algumas perguntas, por exemplo, são: “Você concorda ou discorda que deve obedecer aos seus pais, polícia ou professor mesmo quando não concorda com ela?”; “Você acha que seus pais têm o direito de colocar regras na sua casa?”; “Você acha que a sua casa funciona melhor ou pior quando se ouve o que os pais têm a dizer?”. Temos essas perguntas, que se transformam em uma escala, do ponto de vista quantitativo, para demonstrar a autoridade mais legítima para a menos legítima, que interpreto como sendo a maior aceitação e a menor aceitação da autoridade.

Por meio dessas questões, elaboramos uma forma de mensurar o grau de legitimidade e outras que se incorporam. Uma delas, que também aparece em outros estudos no nosso projeto do NEV/USP, é a ideia dos procedimentos tomados pelas autoridades no momento em que ela adota uma consequência.

Por exemplo, o pai que vai dar uma consequência: o pai vai dizer ao filho que ele vai para o quarto por ter desobedecido uma regra da casa, então como é que esse ato vai ser feito? De modo mais agressivo, apenas como uma ordem ou explicando e conversando sobre a consequência? Claro que estou explicando isso de uma maneira muito formal, mas essa é a ideia.

Então, a autoridade não é só o que é outorgado pela compreensão do conceito, que é dar uma punição ou castigo, mas explicar durante o processo através do questionamento, o porquê de ter feito isso, o porquê de não agir de outra forma. Esse é o princípio básico da democracia, que é o esperado de uma autoridade no estado democrático que não apenas se imponha, mas sim considere o outro e seja dialógica nesse sentido.

O que os dados demonstram, por fim, é que a relação de autoridade pressupõe algum exercício de poder sobre o outro, mas na sociedade contemporânea, em que a violência é cada vez menos aceita. Nota-se que pais e mães, ao usarem do arbítrio de bater nos seus filhos para construir autoridade, na verdade, o minam; digo isso inspirado em Marx Weber e Richard Sennett.

Ao mesmo tempo, não adianta se utilizar do artifício da força e exercer o poder, sem explicar a motivação das consequências, sem ser coerente com as regras, porque nesses casos os dados mostram que as autoridades com maior legitimidade são aquelas que conseguem ser coerentes com as regras, explicam e são transparentes no tratamento com os jovens.

 

Créditos: Entrevista feita por Cristina Uchôa e Caio Andrade.