Câmeras corporais e ação policial: As condições de emergência e os impactos dos dispositivos de controle em São Paulo

08/12/2021

Daniel Edler Duarte[1]

 

Em 2021, a Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) lançou o projeto “Olho Vivo”, um sistema de câmeras corporais acopladas ao uniforme (body-worn cameras, ou BWCs) que grava a rotina de trabalho dos agentes de segurança. O programa consiste na adaptação e expansão de experiências anteriores da PMESP com câmeras operacionais portáteis (COP) e ganhou manchetes dos principais jornais do país graças à aparente correlação entre o uso do dispositivo de vigilância e a queda relevante nos índices de violência policial. Segundo dados preliminares, a letalidade nas áreas em que as câmeras são usadas chegou a zero, e casos de lesão corporal também foram mais raros (Pagnan 2021).

O projeto gerou algumas controvérsias importantes. Por um lado, algumas organizações da sociedade civil apontam que as câmeras podem resolver o problema do controle do uso da força e produzem uma relação mais segura entre a polícia e a sociedade. Por outro, alguns policiais e políticos ligados ao campo da segurança pública afirmam que as câmeras inibem a ação policial, o que poderia gerar resultados negativos em termos de aumento da criminalidade. O deputado Eduardo Bolsonaro (2021), por exemplo, questiona o projeto: “Câmeras ligadas 100% do período que o PM estiver trabalhando vai (sic) desestimulá-lo. Não vai tardar e a sociedade sentirá os efeitos”.

O Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo tem desenvolvido pesquisas que buscam avançar no debate público acerca do uso de novas tecnologias no âmbito da Segurança Pública. Se as tecnologias não são neutras e devem ser mais bem compreendidas a partir do contexto social de suas aplicações, importa discutir as iniciativas concretas que, por vezes, produzem efeitos não previstos na vida social.

A pesquisa aqui apresentada e realizada no âmbito da iniciação científica por Wendel Andrade, pesquisador do NEV, buscou mapear os debates em torno do processo de implementação das câmeras corporais pela PMESP e avaliar seus múltiplos impactos. Ao dialogar com a literatura sobre “procedural justice” (i.e. Tyler 2004; Tyler & Fagan 2008) e legitimidade policial (Bottom & Tankabe 2012), Andrade aponta que o efeito das câmeras pode se dar em três planos distintos. No primeiro, há uma reorganização das relações entre oficiais e praças – militares de níveis hierarquicamente inferiores e seus comandantes. Uma vez que as câmeras oferecem maior controle sobre a ação policial, o trabalho de supervisão ganha uma nova dimensão na rotina institucional. No segundo plano, ao alterar o cotidiano das relações de trabalho, que passam agora a ser potencialmente vigiadas, as câmeras afetam as subculturas profissionais e o contato entre os pares. No último plano, as câmeras transformam a relação dos policiais com a sociedade, influenciando tanto a ação dos servidores quanto a percepção que o público faz da instituição policial.

Através da realização de entrevistas com atores-chave e extensa análise documental, incluindo textos institucionais, trabalhos acadêmicos produzidos pelos próprios policiais e menções ao sistema de câmeras na mídia, o autor reconstitui os encadeamentos que ligam os vários elementos que vão progressivamente compondo o dispositivo de vigilância policial de São Paulo. Segundo Andrade, as BWCs articulam três grupos de interesses bastante claros: (1) organizações de direitos humanos e membros das corregedorias de polícia que buscam promover mecanismos de controle da conduta policial e, mais especificamente, de redução do uso da força; (2) profissionais ligados aos setores de investigação criminal e prossecução penal que veem nas câmeras uma alternativa para a redução da impunidade e, consequentemente, dos índices criminais através do fortalecimento de provas judiciais condenatórias (especialmente em contextos de violência doméstica e tráfico de drogas) e; (3) o setor privado que desenvolve e comercializa esta tecnologia e que observa o campo da segurança pública como um mercado em potencial para auferir lucros.

A pesquisa explora também os dois principais grupos de argumentos que justificam os investimentos nas câmeras. Ao passo que organizações da sociedade civil afirmam que as imagens podem servir para garantir a disciplina dos agentes de segurança e evitar casos de abuso de autoridade, os oficiais envolvidos no projeto, por sua vez, apresentam as câmeras como forma de proteger os agentes, o que visa também a redução da oposição a este dispositivo dentro da corporação. A dificuldade de implementação das BWCs está ligada à resistência de policiais à vigilância de suas atividades. Muitos apontam que as câmeras serviriam apenas para gerar punições administrativas e criminais, criando um estado de insegurança jurídica. Tentando contornar estas dificuldades, os responsáveis pelo projeto apresentam as câmeras como uma forma de “proteger quem está dos dois lados da lente, ou seja, cidadãos e policiais” (Andrade, 2020, p. 31).

Andrade alerta ainda que as câmeras não representam a solução para todos os problemas éticos e de desvio de conduta (Bradford & Jackson, 2015). Surveys realizados no âmbito do próprio NEV indicam que, por vezes, a população da cidade de São Paulo não entende a ação policial como justa e que nem sempre atua de forma respeitosa com a população. Além disso, parte significativa da sociedade tem medo e sente desconfiança da polícia. Por outro lado, surveys com os próprios policiais indicam que estes se ressentem de uma suposta autoridade perdida e alegam que a população não os respeita tanto quanto no passado, o que não apenas dificulta seu trabalho de manutenção da ordem, mas também aumenta o risco da atividade policial. Para Andrade, por mais que as câmeras possam reorganizar o padrão de interação da polícia com a sociedade, ainda precisamos de mais pesquisas sobre o tema para averiguar como (e se) a percepção da legitimidade policial irá se modificar com o uso da nova tecnologia.

 

O trabalho de Andrade oferece um primeiro olhar sobre o tema e ajuda a mapear os atores e seus discursos sobre as câmeras corporais em São Paulo. Um próximo esforço de pesquisa deve se debruçar sobre algumas questões mais específicas, tais como: como criar mecanismos de avaliação de impacto das câmeras corporais? Quais são as evidências acerca dos ganhos de transparência e accountability policial? Quais são as perspectivas dos policiais sobre sistemas que operam de forma autônoma? Como cidadãos reagem durante interações com policiais que portam as câmeras? Qual a percepção dos policiais sobre sua autoridade e capacidade de atuação após a implementação das câmeras? E qual a percepção dos supervisores da polícia sobre esse dispositivo de monitoramento?

Para estimular esse debate, o NEV disponibiliza os relatórios da pesquisa que foi desenvolvida no âmbito do projeto “Building Democracy Daily: Human Rights, Violence, and Institutional Trust”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo na condição de Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID-FAPESP 2013-07923-7).

[1] Pesquisador de pós-doutorado FAPESP no Departamento de Sociologia e no NEV/USP.

 

 

Referências:

BOLSONARO, E. (2021) “Até qnd está certo,mtos acham q o policial está…”. Twitter, 14 de julho. Disponível em: https://twitter.com/BolsonaroSP/status/1415327181375430657

BOTTOMS, A., & TANKEBE, J. (2012) Beyond Procedural Justice: A Dialogic Approach to Legitimacy in Criminal Justice. The Journal of Criminal Law & Criminology, 102(1), 119–170.

PAGNAN, R. (2021) No 1º mês de uso das câmeras ‘grava-tudo’, PM de SP atinge menor letalidade em 8 anos. Folha de São Paulo, 19 de julho. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/07/no-1o-mes-de-uso-das-cameras-grava-tudo-pm-de-sp-atinge-menor-letalidade-em-8-anos.shtml

TYLER, T. R. (2004) Enhancing police legitimacy. The annals of the American academy of political and social Science, 593(1), 84-99.

TYLER, T. R.; FAGAN, J. (2008) Legitimacy and cooperation: Why do people help the police fight crime in their communities. Ohio State Journal Criminal Law, n. 6, 231-275.