Lemos Britto e as prisões no Brasil
26/03/2020
Por Thiago Reis Oliveira Guimarães e Marcos César Alvarez As condições de encarceramento no Brasil são uma preocupação constante de militantes de Direitos Humanos, de organizações não governamentais, de operadores da justiça, de administradores das instituições de reclusão e de todos que acreditam que, em sociedades democráticas, o poder de punir deve ser permanentemente supervisionado […]
Por Thiago Reis Oliveira Guimarães e Marcos César Alvarez
As condições de encarceramento no Brasil são uma preocupação constante de militantes de Direitos Humanos, de organizações não governamentais, de operadores da justiça, de administradores das instituições de reclusão e de todos que acreditam que, em sociedades democráticas, o poder de punir deve ser permanentemente supervisionado e colocado em discussão pela coletividade. Ao contrário do que se poderia imaginar, tendo em vista que, ainda na atualidade, a violência, os maus tratos, a tortura, a presença de facções, as imensas dificuldades de ressocialização se fazem presentes no sistema prisional brasileiro, essa preocupação não é nova, como atesta o a atuação do jurista José Gabriel de Lemos Britto (1886–1963), analisada pelo pesquisador Thiago Reis Oliveira Guimarães em dissertação intitulada “Os systemas penitenciarios do Brasil ou um máo systema de prisões: análise do relatório em 03 volumes de J. G. de Lemos Britto”, defendida em 28 de fevereiro de 2020 no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (PPGCS/UFBA) diante de banca formada pelos pesquisadores Luiz Claudio Lourenço (UFBA, orientador), Bruna Angotti (UPM-SP) e Marcos César Alvarez (USP).
Lemos Britto foi penitenciarista, político, jornalista, burocrata, dramaturgo, biógrafo, poeta, criminólogo, literato, além de tantas outras funções que eram características dos bacharéis formados no contexto da segunda metade do século XIX e início do século XX no Brasil, em que as faculdades locais, sobretudo as de Direito, serviam principalmente para formar os quadros burocráticos e políticos brasileiros, ao criar espaços para que setores das elites desenvolvessem uma formação eclética e atuassem em muitas frentes. Lemos Britto, com o apoio do então presidente da República, Arthur Bernardes, e de seu ministro da Justiça, João Luiz Alves, percorreu, em 1923, durante mais de seis meses, os estabelecimentos prisionais de quase todas as capitais da república brasileira, além de visitar algumas prisões do interior dos estados, recolhendo inclusive significativo acervo de fotos e outros relatórios enviados por diretores de unidades e agentes políticos.
O resultado desta peregrinação pelo Brasil foi um relatório em três volumes, com mais de mil páginas de imagens fotográficas e descrições textuais, dados estatísticos e propostas de reformas, que se apresentam como um verdadeiro dossiê sobre o pensamento acerca das prisões naquela época, seja em termos da legitimidade de sua existência ou do seu funcionamento, seja em como estas mesmas prisões, no Brasil e fora dele, se apresentavam na sua infraestrutura, condições sanitárias, e, em especial, nas dimensões centrais para justificar os espaços de encarceramento nas primeiras décadas do século XX, quais sejam, o trabalho e a educação dos presos.
Os seguintes desafios podem ser destacados nas descrições de Lemos Britto: a) condições precárias de infraestrutura, como atesta o exemplo da Casa de Detenção da Bahia, que havia sido construída no século XVII e adaptada pontualmente e de forma questionável para seguir sendo utilizada nos anos seguintes; b) condições sanitárias em desacordo com as exigências da época, indo desde falta de arejamento dentro das unidades prisionais, superlotação das células de aprisionamento, ausência de reflexão acerca dos locais para construção das prisões e o seu modelo arquitetônico; c) espaços precários ou mesmo total ausência de espaços para o exercício laboral ou a educação dos presos, com oficinas precarizadas e escassez de matéria prima para o trabalho ou mesmo ausência de salas de aulas e de profissionais para ensinar os internos; d) maneira que eram mantidas reclusas especialmente mulheres e crianças, já que estes dois grupos eram mantidos, no mais das vezes, juntos aos homens adultos, sem que se atentasse para as particularidades do encarceramento feminino e infantil.
Pode-se observar que as condições das prisões brasileiras em “Os systemas penitenciarios do Brasil” são narradas como espaços institucionais que existiriam tanto como realidade concreta a ser analisada e sujeita a intervenções, quanto como conjunto de ideias pertinentes para se refletir acerca de sua existência e legitimidade, ou seja, como espaços-ideias. Estes espaços-ideias têm, na leitura de Lemos Britto, um enfoque crítico especial na infância como fim último, seja no uso das prisões como uma maneira de agir para evitar que crianças infratoras se tornassem adultos infratores, seja como forma de contenção de uma dimensão já corrompida de adultos aprisionados. O trabalho, por outro lado, e a educação, em menor grau, apareciam como os instrumentos por excelência de concretização dos fins pensados para a existência da prisão, como modos de reintegração dos presos ao convívio social e contenção de impulsos de retorno a práticas criminosas, acompanhando o autor, nesta e em outras reflexões, o que era considerado como o conhecimento criminológica mais avançado da época. A partir de um olhar retrospectivo, é possível observar como “raça” e “gênero” são elementos transversais ao quadro descritivo trazido por Lemos Britto, ora na composição das estatísticas penitenciárias que apresentava, ora em nuances discursivas empregadas nas narrativas sobre os presos as presas. Por fim, a ciência – como já afirmado, seguindo as ideias criminológicas de sua época – surgia como o grande discurso legitimador das prisões, ao passo que a vontade política era apresentada como o “fiel da balança”, capaz de considerar se os fins pensados para as prisões seriam ou não colocados efetivamente em prática.
Se, na atualidade, a situação de pandemia vivida no mundo desperta novo alerta, diante da possibilidade do surto chegar às prisões brasileiras, permanentemente superlotadas e em condições sanitárias sempre questionáveis, com potencial mortífero inimaginável, as reflexões de Lemos Britto despertam renovado interesse, ao ilustrar como as prisões têm funcionado como espaços por excelência de reprodução das desigualdades no país.
A pesquisa realizada dialoga estreitamente com investigações desenvolvidas no NEV sobre a história das práticas punitivas e das prisões no Brasil, bem como reflete colaborações diversas, concretizadas nos últimos anos, com o Laboratório de Estudos sobre Crime e Sociedade da Universidade Federal da Bahia.