NEV na mídia | Valor Econômico: Governo precisa olhar segurança pública e penitenciárias mais de perto, diz Sérgio Adorno
22/02/2024
Em 21 de fevereiro, o Professor Sérgio Adorno, coordenador do programa NEV-CEPID/Fapesp, teve uma entrevista exclusiva publicada na edição impressa do jornal “Valor Econômico” para oferecer análises a respeito do que foi considerado pela imprensa brasileira “a primeira crise do novo Ministro da Justiça e Segurança Pública”: a fuga de três pessoas de um presídio […]
Em 21 de fevereiro, o Professor Sérgio Adorno, coordenador do programa NEV-CEPID/Fapesp, teve uma entrevista exclusiva publicada na edição impressa do jornal “Valor Econômico” para oferecer análises a respeito do que foi considerado pela imprensa brasileira “a primeira crise do novo Ministro da Justiça e Segurança Pública”: a fuga de três pessoas de um presídio de segurança máxima em Mossoró, RN.
“Esse acontecimento precisa provocar um senso de gravidade e o entendimento de que o sistema de segurança [das penitenciárias] precisa de aperfeiçoamento contínuo. As políticas penitenciárias deveriam ser imbuídas do espírito de que a cada três anos seja feita uma espécie de inspeção, uma auditoria periódica, para rever o funcionamento e fazer as correções necessárias”, diz Adorno. Segundo ele, o governo vai ter que admitir que a política pública não é simplesmente instalar a penitenciária, colocar pessoal e deixar a coisa funcionar. “Tem que ter inspeção periódica para que essas coisas não aconteçam, ou pelo menos não aconteçam com frequência”.
Na abertura da matéria, o repórter Rafael Vazquez destaca: “Adorno também orienta a não deixar que a polarização ideológica contamine o debate”.
“Esse acontecimento precisa provocar um senso de gravidade e o entendimento de que o sistema de segurança [das penitenciárias] precisa de aperfeiçoamento contínuo. As políticas penitenciárias deveriam ser imbuídas do espírito de que a cada três anos seja feita uma espécie de inspeção, uma auditoria periódica, para rever o funcionamento e fazer as correções necessárias”, diz Adorno.
Matéria na íntegra
Especialista do Centro de Estudos da Violência defende tratamento científico para a questão da violência no país
21/02/2024 01h32
Leia a seguir a íntegra da entrevista:
Valor: É possível apontar a principal falha ocorrida na Penitenciária Federal de Mossoró que permitiu a fuga de dois presos perigosos?
Sérgio Adorno: Ainda não temos elementos tão sólidos para fazer uma análise precisa sobre as responsabilidades. O fato de ser um presídio de segurança máxima diminui muito a probabilidade de fugas, mas não impede totalmente. No mundo inteiro encontramos alguns casos de fugas em penitenciárias bastante fortificadas. Mas é claro que esse acontecimento precisa provocar um senso de gravidade e o entendimento de que o sistema de segurança precisa de aperfeiçoamento contínuo. As políticas penitenciárias deveriam ser imbuídas do espírito de que a cada três anos seja feita uma espécie de inspeção, uma auditoria periódica, para rever o funcionamento e fazer as correções necessárias. O governo vai ter que admitir que a política pública não é simplesmente ir lá, instalar a penitenciária, colocar pessoal e deixar a coisa funcionar. Tem que ter inspeção periódica para que essas coisas não aconteçam ou pelo menos não aconteçam com frequência.
Valor: Essa fuga abala a confiança nos presídios brasileiros de segurança máxima?
Adorno: Creio que, por enquanto, não é para tanto. Podemos usar a metáfora da aviação. Não é porque um avião cai que devemos pedir para as pessoas não viajarem mais de avião. O que é preciso fazer agora, além de capturar urgentemente os fugitivos, é uma revisão nos cinco presídios de segurança máxima para ver o que está acontecendo e se os protocolos estão funcionando ou não. Agora é um momento crucial e tudo depende da resposta que o governo vai dar dentro de um tempo curto, pois para resgatar a confiança precisa tomar medidas que tenham impacto na percepção coletiva.
Valor: A fuga no presidio de Mossoró pode encorajar membros de facções organizadas a retirarem seus membros mesmo em prisões de segurança máxima?
Adorno: É algo muito difícil de prever. Quando eu estava em campo, fazendo pesquisas dentro de prisões, conseguia mais ou menos sentir o que estava acontecendo mesmo que não soubesse exatamente. Dava para perceber uma certa agitação, conversas laterais o tempo todo. Lembro que estava fazendo uma pesquisa na década de 1980 e houve uma grande rebelião na Penitenciária do Estado de São Paulo. Eu estava com uma equipe grande fazendo pesquisa lá dentro e tirei a equipe uma semana antes [da rebelião] porque senti que o ambiente estava ficando carregado. Pode até ter sido uma coincidência, mas eu senti o ambiente ficando estranho. É possível que pesquisadores mais próximos do presídio de Mossoró consigam avaliar melhor do que eu se isso está acontecendo. Porém, eu não duvido que isso possa acontecer porque a capacidade de comunicação que essas facções têm é inimaginável.
Valor: Quanto essa fuga pode influenciar o debate sobre segurança pública no país visto que é uma área pautada por discussões ideologicamente polarizadas?
Adorno: Não tenho dúvida de que vai influenciar. Basta observar que a oposição [ao governo Lula] já pretende convocar o ministro da Justiça para explicar o caso em audiência. O tema da segurança sempre está presente com vários acontecimentos que se sucedem e os governos não têm tido sucesso em formular políticas de segurança sustentáveis ao longo do tempo para restituir a confiança dos cidadãos na aplicação das leis. Em períodos eleitorais, o tema da segurança mobiliza emoções e aquele que usa uma política que confunde com propostas de medidas arbitrárias e uso excessivo da força tende a ter êxito, infelizmente. Isso não é um caso só brasileiro. É um cenário muito latino-americano e também global muitas vezes. Se olharmos o que acontece nas prisões no sudeste asiático, por exemplo, não é um cenário muito diferente.
Valor: Temos observado um movimento crescente de especialistas pedindo que as políticas de segurança pública passem a ser mais pautada em evidências científicas e menos em decisões políticas. Como o senhor acompanha esse debate?
Adorno: Eu concordo com essa crítica, mas sempre será preciso convencer a classe política. Uma boa parte dos politicos precisam começar a entender que a segurança pública exige tomadas de decisões técnicas. Fico muito irritado, inclusive quando ouço na mídia, principalmente nos meios eletrônicos, que não se faz pesquisa no Brasil. Não é verdade. Acumulamos um grau impressionante de conhecimento nos últimos 30 anos em todas as áreas que envolvem segurança e controle da violência. Existem bons planos que, de alguma maneira, são formulados por pesquisadores. Em alguns casos, conseguimos converncer os governantes e obter avanços. Em outros casos, houve retrocesso, como no afrouxamento recente na política de controle de armas [durante o governo Bolsonaro]. Este foi um exemplo claro de um governante que jogou as evidências no lixo. Portanto, apesar de todo o conhecimento acumulado, as decisões são uma questão de poder. Enquanto a sociedade não entender e pressionar para que a segurança tenha uma política de Estado, e não de governos, fica difícil. Precisamos formar um pacto de curto, médio e longo prazo para definir tarefas que devem ser cumpridas, senão vai ser difícil vermos avanços concretos.
Valor: Em relação a penitenciárias, o que as evidências científicas mostram que poderia funcionar no Brasil?
Adorno: Falando de penitenciárias de modo geral, uma das coisas fundamentais na política pública seria reduzir, no médio e longo prazo, o uso da pena privativa da liberdade e ir utilizando penas alternativas que fizessem com que o indivíduo tivesse limitações nos seus direitos. Isso eliminaria os inconvenientes da concentração de pessoas nas penitenciárias. Porém, isso não pode ser feito da noite para o dia. Portanto, precisa haver um pacto com a sociedade e dizer ‘olha, nossa meta daqui a cinco anos é X, daqui a 10 é Y’. Foi o que fizeram na área da saúde com o controle das epidemias, das endemias. As corporações médicas foram suficientemente influentes para poder formar os seus representantes nas câmaras legislativas, no Congresso Nacional, a ponto de terem, efetivamente, representantes defendendo interesses gerais da população.
Valor: O governo federal, e não me refiro a nenhum governo específico, está engajado o suficiente em segurança pública ou os líderes buscam se afastar do custo político que essa área costuma gerar?
Adorno: Dentro das polícias, inclusive da Federal, existe essa crítica, mesmo que as operações e apreensões de drogas da Polícia Federal tenham aumentado nos últimos tempos. Muitos deles [policiais] sabem que o [engajamento] é insatisfatório. Precisa ter mais investimento em inteligência e um plano de longo prazo. Temos um pessoal qualificado, sobretudo na Polícia Federal, mas faltam instrumentos mais adequados. Não podemos mesmo perder de vista que é uma questão política. Enquanto não conseguir enfrentar a questão política e incentivar mais colaboração, melhorar a segurança pública no país vai ser um trabalho difícil.
Valor: Um presidente da República, seja ele ou ela quem for, não precisa se envolver mais pessoalmente com o tema segurança pública, que hoje é uma das principais preocupações dos brasileiros?
Adorno: É complexo porque, pelo bem ou pelo mal, ele pode criar a ideia de que sucesso nessa área depende de uma competição entre Estados, municípios e corporações. Pode ter um lado positivo, mas também pode ter efeitos desastrosos dependendo de como um presidente, como líder de massas, conduzir. Agora, é fato que a segurança pública sempre aparece com uma das maiores reivindicações da população, mas não vemos que os projetos de governo tomem a segurança como alguma coisa a ser efetivamente enfrentada. Falam de aumentar o número de policiais, de melhorar os equipamentos. Tudo bem, isso é desejável e pode até resultar em um diagnóstico local, mas é preciso ter o entendimento de que o conhecimento científico da violência nas suas diferentes modalidades permite pensar melhor em efeitos de médio e longo prazos. Isso é o que os governos, seja de direita ou esquerda, não têm feito. Não existe um projeto.