Punição, Segurança Pública, Sistema de Justiça

Controlando o poder de matar: uma leitura antropológica do Tribunal do Júri – ritual lúdico e teatral

A tese apresenta uma etnografia de sessões de julgamentos de homicídio realizadas entre 1997 e 2001, nos cinco Tribunais do Júri da cidade de São Paulo, sendo quatro os conceitos-chave que a orientam: jogo, ritual, drama e texto. A principal conclusão é a de que esses julgamentos baseiam-se na manipulação de imagens relativas a dois poderes fundamentais em todo e qualquer grupo social: o de um indivíduo matar outro e o de instituições sociais controlarem tal faculdade individual. O que está em jogo e em cena, no Júri, mais do que a vida e a morte de indivíduos, é a própria sobrevivência do grupo. Dependendo de como as mortes são textualizadas e contextualizadas, transformadas em imagens e encenadas, o poder individual de matar é considerado socialmente legítimo ou ilegítimo.

Um dos principais objetivos do trabalho foi, portanto, captar quais valores estruturam essa “imaginação social das mortes” e, consequentemente, como o próprio grupo regula a convivência de seus membros e a sua sobrevivência. Os participantes do Júri, ao darem expressão às imagens desses poderes, através de discursos, expressões e decisões, criam e recriam o mundo da cultura sobre o da natureza. Regras morais, sociais e econômicas arrancam a morte de sua esfera meramente natural e transformam-na em metáfora de dramas da vida: vizinhança, parentesco, amor, traição, trabalho, desemprego, tensões do tráfico de drogas e de armas. Cada sessão de Júri é um teste desse mundo das regras, ao qual a cultura é submetida e através do qual ela submete os envolvidos.

O Júri tem um caráter lúdico porque as principais características de qualquer jogo estão nele presentes. Trata-se de uma atividade consciente, exterior à vida habitual e que, enquanto ocorre, absorve os jogadores de maneira intensa. É praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo certas regras. Geralmente, promove a formação de grupos que tendem a rodear-se de segredo e a sublinhar sua diferença em relação ao resto do mundo. Além disso, há uma transformação da realidade em imagens. Personagens e dramas são criados e apresentados aos jurados, em duas versões básicas — a da acusação e a da defesa —, com vistas a que, no silêncio imposto a cada um, eles se identifiquem com a versão que lhes parecer mais verossímil e dêem seu veredicto. É um jogo de persuasão. O caráter ritual e cerimonial do Júri reside nas ações ordenadas — falas, gestos, expressões —, de natureza predominantemente simbólica, que se desenvolvem em momentos apropriados das sessões e inspiram atitudes de lealdade, respeito e reverência a valores que se materializam nos votos dos jurados. Tais ações transcendem o acontecimento narrado nos autos e alcançam dramas básicos da existência humana.

Por serem o sistema de justiça criminal e, em seu interior, o Júri, sistemas de poder, eles produzem efeitos que se comparam às ilusões criadas pelo teatro, uma vez que a arte de governar e a arte cênica são inseparáveis. Durante os julgamentos, juiz, promotor, defensor e jurados dividem a posição de “príncipes”. Enquanto o primeiro reina soberano e aparentemente neutro, o segundo acusa veementemente, o terceiro protege e os demais decidem, em silêncio meditativo. Como um deus que se quadriparte e com isso se fortalece, a encenação de julgar dramas de vida e morte tem como um de seus resultados mais marcantes sacralizar a instituição “Justiça” e revigorar a etiqueta e a estética sociais. Podendo ser lidas como um texto literário, cujas palavras e expressões principais advêm de um vocabulário de sentimento, as sessões relatam, metaforicamente, a violência de viver e morrer e as tentativas de se lidar com esse drama.

Ficha Técnica

Controlando o poder de matar: uma leitura antropológica do Tribunal do Júri – ritual lúdico e teatral
Authors: Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer
Ano: 2001
Tema(s): Punição, Segurança Pública, Sistema de Justiça
Tipo: Tese e Dissertação
Language: Português
Formato: PDF
Páginas: 284
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Como citar essa publicação

SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Controlando o poder de matar: uma leitura antropológica do Tribunal do Júri – ritual lúdico e teatral. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Departamento de Sociologia. Tese (Doutorado). São Paulo, 2001.