Nota do NEV/USP | Por uma sociedade sem manicômios

19/05/2022

18 de maio: por uma sociedade sem manicômios*

“O importante é termos mostrado que o impossível se tornou possível. Dez, quinze, vinte anos atrás, era impensável que um asilo pudesse ser destruído”**

Franco Basaglia

 

No dia 18 de maio, comemora-se no Brasil o Dia da Luta Antimanicomial em defesa dos direitos dos indivíduos diagnosticados como portadores de transtornos mentais severos e/ou persistentes. Trata-se de mais uma frente de luta pelos Direitos Humanos que deve ser especialmente louvada no atual contexto, em que ações deliberadas de grupos políticos buscam solapar os valores democráticos no país em praticamente todas as direções possíveis.

A luta contra os manicômios e outras instituições totais no campo da saúde desenvolveu-se ao longo do século XX em inúmeros países. A reforma psiquiátrica italiana, em que se destacam nomes como o do psiquiatra Franco Basaglia (1924-1980), foi uma das mais influentes no mundo. Lá, como em outros contextos, tratava-se de uma luta não sou só no âmbito do sistema de saúde, mas imediatamente em sentido político mais amplo. O próprio Basaglia havia vivenciado diretamente uma instituição total, pois fora preso, ao militar em grupo antifascista na Itália. A partir dessa experiência, o psiquiatra italiano apontava a convergência entre asilos psiquiátricos e prisões, ambas instituições voltadas para confinar sobretudo os pobres. Como apontavam outros autores da época, como o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), asilos e prisões seriam em grande medida intercambiáveis, em suas funções de marginalização e de exclusão.

No Brasil, a luta antimanicomial foi especialmente impulsionada pelo contexto de fim da ditadura militar e de redemocratização política, articulada a outras lutas da época, como pelo fim da tortura, pela humanização das prisões, pelo retorno da liberdade de expressão etc.

Alguns movimentos e acontecimentos podem ser citados como decisivos nesta direção. Em 1978, deu-se início ao Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM). Neste mesmo ano, ocorreu o II Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, tendo sido justamente escolhido o dia 18 de maio como o Dia da Luta Antimanicomial, com a adoção do lema: “Por uma Sociedade sem Manicômios”. Foi neste mesmo ano que estiveram presentes, no I Congresso Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições, vários pensadores envolvidos no movimento internacional, como o já citado Basaglia. Em 1987, por sua vez, ocorreu a 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental, desdobramento da 8ª Conferência Nacional de Saúde. Outro marco importante foi a aprovação no Brasil da Lei nº 10.216 em 2001. Essa lei defende o tratamento não asilar aos indivíduos diagnosticados como portadores de transtornos mentais severos e/ou persistentes,  por meio dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

O primeiro CAPS do Brasil surgiu em 1986 em São Paulo, nomeado CAPS Professor Luiz da Rocha Cerqueira. Foram também criados os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), sendo o primeiro NAPS inaugurado em 1989 em Santos. O CAPS acabou se tornando o dispositivo central dessa nova rede de serviços de saúde mental no país. Atualmente, os serviços aí desenvolvidos se voltam para crianças e adolescentes, usuários de álcool e outras drogas e adultos em geral.

Deste modo, a luta antimanicomial e seus inúmeros resultados como, no Brasil, a criação do CAPS são importantes conquistas em termos de Direitos Humanos que precisam ser retomadas, tendo em vista a expansão do horizonte da Democracia neste momento de ameaças e incertezas.

* Com a contribuição de Roberta de Oliveira Soares (University of Montreal), Sergio Grossi (NEV/USP) e Marcos César Alvarez (NEV/USP).

** BASAGLIA, F.; ONGARO BASAGLIA, F. Conferenze brasiliane. Milano: Cortina, 2000.