NEV na mídia | CONJUR: Controvérsias possíveis: câmeras corporais e flagrantes de tráfico de drogas

25/04/2024

A pesquisadora Maria Gorete Marques de Jesus, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), elaborou um artigo para a revista eletrônica Consultor Jurídico (Conjur) a respeito do tema das câmeras corporais usadas por policiais, abordando uma pesquisa conduzida pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) que analisou os resultados e impactos do uso dos dispositivos nas unidades da polícia de São Paulo, no período entre janeiro de 2019 e julho de 2022.

Marques aponta que, mesmo com resultados positivos do programa, a gestão atual do governo estadual demonstra posicionamentos diferentes em algumas ocasiões: no sentido de reduzir e de manter a política das câmeras corporais, porém sugerindo possíveis modificações na forma como ela é implementada.

Link original: https://www.conjur.com.br/2024-abr-19/controversias-possiveis-cameras-corporais-e-flagrantes-de-trafico-de-drogas/

 

Matéria na íntegra

Em 2020, a Polícia Militar de São Paulo iniciou a implementação do programa de câmeras operacionais portáteis, conhecidas como câmeras corporais, fixadas nos uniformes dos policiais para filmar suas ações.

Uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública  apontou uma redução significativa na letalidade policial, evitando cerca de 104 mortes.

Essa redução representou aproximadamente 57% das mortes decorrentes de ações policiais em unidades onde as câmeras foram implantadas. Além disso, houve uma queda de aproximadamente 63% no número de lesões corporais resultantes de intervenção policial após a adoção das câmeras.

O estudo comparou unidades policiais da região metropolitana de São Paulo com e sem a tecnologia, analisando o período entre janeiro de 2019 e julho de 2022, com base em registros de ocorrência da Polícia Civil e boletins de ocorrência da Polícia Militar (FBSP/FGV, 2022).

No entanto, desde a atual gestão do governo estadual, a política de câmeras corporais tem enfrentado intervenções significativas. Houve aumento na letalidade e desestímulo ao uso das câmeras como controle da violência policial.

O governador tem adotado uma postura ambígua, ora manifestando desejo de reduzir essa política, ora indicando que seguirá com ela, mas em um formato diferente. Esta mudança de rumo na política das câmeras corporais tem levantado preocupações sobre o futuro do programa e seu impacto na segurança pública e na transparência das ações policiais em São Paulo.

As pesquisas são um importante mecanismo de averiguação dos impactos das câmeras corporais, sobretudo com relação ao controle do uso da força extrema pela polícia. No entanto, ainda há poucos estudos que analisam como os atores do sistema de justiça estão lidando com tal recurso e em que medida eles têm acionado (ou não) as imagens dessas câmeras para avaliarem possíveis denúncias de violência policial, tortura, flagrante forjado etc.

Percebe-se que a maioria das pesquisas tem como foco o impacto das câmeras no trabalho policial, sobretudo na questão da violência.

Um grupo de pesquisadores têm se debruçado sobre esse tema [1] buscando analisar como estes atores têm acionado e/ou requisitado as imagens das câmeras corporais dos policiais, em quais casos e quem solicita, se frequentemente é a defesa (pública ou particular), a promotoria ou o juiz.

A pesquisa vem sendo realizada a partir de um banco de dados de processos correspondentes ao período de 2021 a 2022, concentrados do Fórum da Barra Funda — São Paulo, capital, com cerca de 77 casos a serem analisados.

Alguns dados preliminares já estão sendo analisados, um deles foi o de que havia recorrências de solicitações das imagens das câmeras corporais dos policiais em casos referentes à incriminação por tráfico de drogas e condutas afins (37,3%) e de roubo (32%).

 

Tráfico e roubo

Esses dados nos indicam que os operadores do direito tendem a solicitar as imagens das câmeras corporais dos policiais militares com maior frequência em casos de tráfico de drogas e de roubo. No entanto, esses números também refletem o que as estatísticas oficiais já mostram, que os crimes que mais se prendem no Brasil são o tráfico de drogas (28%), seguido de roubo (25%) e furto (13%) [2].

Ao analisar alguns dos autos contidos no banco de dados de casos de tráfico de drogas, tivemos duas situações interessantes. Uma em que o juiz não acolheu o pedido do representando do Ministério Público para juntar as imagens das câmeras corporais ao processo porque entendia que “a palavra dos policiais era suficiente, sendo desnecessária a solicitação das imagens”.

Esse tipo de conduta reproduz a ideia de que não é preciso trazer nenhuma outra evidência para os autos porque a palavra do policial é suficiente, por ser considerada de “presumida veracidade”, nutrindo assim um repertório de crenças em torna da narrativa elaborada e construída pelo próprio agente que efetuou o flagrante (Jesus, 2018).

Em outro caso, as imagens foram fundamentais para que o acusado fosse absolvido. Nesse caso, o magistrado determinou o envio dos dados colhidos pelas câmeras corporais ao natalhão de polícia, contudo, após ter sido oficiada, a Polícia Militar não localizou imagens produzidas por um dos policiais. Instalou-se uma dúvida sobre a possibilidade de interrupção intencional de uma das gravações.

Diante desses fatos, o próprio representante do Ministério Público reconheceu o conflito entre as imagens e as narrativas policiais: “pelas razões apresentadas, conflitantes os testemunhos policiais com suas próprias imagens, é forçoso reconhecer que não há provas suficientes à condenação”.

Na sentença, a autoridade judicial julgou a ação improcedente e absolveu o réu, tendo em vista as “fragilidades do panorama probatório”, além da devida aplicação do princípio da presunção de inocência.

Esse caso traça um panorama interessante, eis que permite que a narrativa policial seja combinada às imagens das câmeras corporais, viabilizando possibilidades de controvérsias a uma narrativa que, corriqueiramente, é recepcionada pelos atores do sistema de justiça sem qualquer questionamento.

Esses casos trazem um tema a ser ainda melhor analisado pelo adensamento da pesquisa, o fato de que as imagens das câmeras corporais podem trazer novas disputas aos processos, mesmo quando eles não são enviados. A interpretação das imagens pelos atores do sistema de justiça é outra questão, porque cada um dos atores (acusação ou defesa) pode fazer uma leitura dos vídeos de uma maneira distinta.

A outra questão diz respeito ao confronto possível entre as narrativas policiais presentes nos boletins de ocorrência e as imagens. Uma hipótese a ser ainda investigada é a de que as câmeras podem estar inibindo práticas de flagrante forjado ou outros tipos de prisões ilegais porque os policiais se sentem mais expostos pelas imagens de suas ações.

Apesar de preliminar, a pesquisa indica que a política de câmeras corporais pode impactar não apenas o trabalho policial, com a redução do uso da violência e abusos, mas também outras instâncias, como o próprio sistema de justiça, sobretudo nos casos de incriminação de tráfico de drogas, em que palavra do policial acaba sendo central para o desfecho dos processos, em sua maioria, desfavorável às pessoas presas por esse tipo de acusação.