Nota do NEV/USP | 31 anos do Massacre do Carandiru: nada de novo no front do sistema prisional brasileiro

02/10/2023

O Massacre do Carandiru permanece como um dos eventos mais sombrios da história do sistema prisional brasileiro. Ao mesmo tempo, tornou-se um símbolo dos problemas crônicos de nossas prisões: superlotação, violência e condições carcerárias desumanas.

A Penitenciária do Estado foi inaugurada no dia 21 de abril de 1920, no bairro Carandiru, zona norte de São Paulo. O complexo que seria ali construído com o tempo ficou popularmente conhecido como Carandiru, devido à localização. Na época havia diversos planos urbanos e arquitetônicos em andamento, que pretendiam implementar uma ideia de progresso e de modernização para a cidade. Desse modo, o projeto da Penitenciária do Estado se apresentou como criativo, funcional, disciplinar, racional e científico. Não por acaso, era também conhecida como Casa de Regeneração, com capacidade máxima de 1.200 custodiados em celas individuais. Efetivamente, foi considerada como um modelo, reconhecida internacionalmente, inclusive como um cartão postal da metrópole.  Apesar do otimismo, em menos de vinte anosa proposta de “prisão modelo” ruiu e deu lugar à extrema violência, abandono, precariedade e violações de Direitos Humanos.

Entre os diversos problemas, havia dois imediatos: por um lado, a ausência de manutenção, que permitiu o avanço da deterioração da estrutura, como nas instalações elétricas, no saneamento, nas celas e nas oficinas. Por outro lado, a superlotação, que intensificava os demais problemas. Procurando eliminar esses desafios, o governo construiu outras unidades no local, como o Presídio de Mulheres, o Centro de Observação Criminológica, o Presídio da Polícia Civil e a Casa de Detenção, inaugurada em 1956 para receber presos novos e transferidos. Foi na Casa de Detenção, em 1992, que ocorreu um dos maiores massacres no sistema penitenciário paulista, em que ao menos 111 presos foram mortos por policiais militares numa ação de contenção de rebelião.

O caso gerou, e ainda gera, discussões significativas sobre o sistema de justiça criminal brasileiro e sobre os Direitos Humanos no contexto das prisões. Ao mesmo tempo, 31 anos depois, esse sistema ainda enfrenta uma série de desafios, semelhantes aos que culminaram no massacre. Esse cenário pode ser ilustrado por uma pesquisa recém-publicada realizada pelo CNJ, Insper e FGV (2023)[1]. A pesquisa reforça como as prisões no Brasil são palcos de violações sistemáticas dos Direitos Humanos, afetando principalmente a juventude negra, pobre e das periferias.

A pesquisa aponta ainda como a superlotação e as condições precárias das prisões contribuem para penas ainda mais cruéis: a falta de recursos básicos, como comida adequada, água limpa, higiene, roupas e acesso a ar fresco e luz do sol, resultam em propagação de doenças, piora da saúde mental e aumento dos riscos de traumas e mortes violentas. A pandemia de COVID-19 expôs ainda mais as preocupações com as condições de vida nas prisões, bem como as condições de trabalho dos funcionários e equipes de saúde que atuam nesses locais. Além disso, problemas de saúde como tuberculose, HIV/AIDS e sífilis são prevalentes na população prisional. A pesquisa enfatiza que há falta de informações confiáveis e de abrangência nacional sobre as mortes, lacunas na investigação institucional e responsabilização das mortes ocorridas no sistema prisional, especialmente aquelas relacionadas a “causas desconhecidas” ou a pessoas que morreram fora das prisões, mas devido a experiências anteriores de encarceramento.

Igualmente presentes são as ocorrências de uso de tortura e violência por agentes públicos nas prisões. Em um caso inédito, a ONU acatou denúncia contra o Brasil por tortura no sistema prisional. A denúncia se refere a violações cometidas em setembro de 2015, quando o Grupo de Intervenção Rápida (GIR) fez uma incursão no Anexo de Regime Semiaberto de Presidente Prudente (SP). Naquele momento, cerca de 240 pessoas presas sofreram revista geral sob violência física e psicológica e foram submetidas a tortura por duas horas e meia. A denúncia, que contou com o parecer elaborado pelo NEV, descreve o uso excessivo da força, abusos de autoridade, o uso de técnicas e equipamentos não letais de forma potencialmente letal e aponta a omissão dos órgãos de fiscalização e controle frente às violações de direitos fundamentais.

Após 31 anos, permanece a constatação de que o Massacre do Carandiru não representou um marco de mudança, nem em relação às condições precárias do sistema prisional brasileiro, nem em termos de sensibilização do debate público para a importância do tratamento digno aos condenados pela justiça. Lembrar tal data é imprescindível para a construção da memória da violência nas prisões no país e para alertar no que diz respeito aos desafios ainda presentes para a efetiva consolidação dos Direitos Humanos no Brasil.

 

[1] Letalidade prisional: uma questão de justiça e de saúde pública: sumário executivo / Conselho Nacional de Justiça; Instituto de Ensino e Pesquisa Insper; Colaboração Fundação Getúlio Vargas. – Brasília: CNJ, 2023.