“Não existe democracia se não houver informação de qualidade, independente e de caráter científico”

02/10/2020

No dia 8 de outubro, às 13h30, acontece o lançamento de ‘Paradoxos – 30 anos de Democracia e Direitos Humanos no Brasil’, documentário que discute a história e contradições da democracia brasileira a partir dos olhares e pesquisas do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

Apesar das entrevistas terem sido gravadas em 2018, muitas das questões levantadas são importantes para compreender o Brasil de hoje. “Acredito que as análises do filme conseguem explicar os caminhos que nossa democracia estava tomando e que levaram ao que temos”, explica Vitor Blotta, vice-coordenador do NEV-USP e que dividiu a direção com Fabrício Bonni, da Produtora Unnova. O pesquisador complementa dizendo que “as democracias sociais ou mesmo as liberais do mundo têm sido deterioradas por governos que foram eleitos, mas que operam minando as instituições e as bases do Estado de direito e da democracia”.

O filme é produzido pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP para celebrar seus 30 anos de existência, e lembrar do seu surgimento no contexto da redemocratização e do pioneirismo em estudos de violência e direitos humanos. Veja a entrevista com os diretores.

Quando e como surgiu a ideia de produzir um documentário sobre a trajetória da democracia no Brasil?

Fabrício: O documentário surgiu de uma ideia do Vitor Blotta, pesquisador do NEV, e da produtora Unnova, em perceber o paralelo que existia entre os 30 anos do NEV e a democracia no Brasil.

Vítor: Essas efemérides foram acompanhadas de muitas mudanças tanto no cenário político quanto nas pesquisas do NEV, como as manifestações de 2013, o fim dos governos Lula-Dilma, e os primeiros anos do programa de pesquisa do NEV Construindo a democracia no dia a dia (CEPID-FAPESP). Entendemos com isso que era hora de tentar sintetizar as contribuições do NEV desde sua fundação para tentarmos discutir e compreender por que e como chegamos até o momento atual.

Fabricio: Nós da produtora Unnova já vínhamos de uma jornada com o documentário “Guerra Sem Fim – Resistência e luta do povo Krenak” que resultou em um material audiovisual também com finalidade educacional e também sob a perspectiva dos direitos humanos e que trouxe um grande impacto positivo na sociedade, mostrando a força desse tipo de conteúdo nos dias atuais. No caso do documentário “Paradoxos”, no começo abordaríamos apenas os acervos históricos do NEV e sua história enquanto núcleo de pesquisa e seus feitos, mas o projeto foi evoluindo para uma obra audiovisual mais pautada na amplitude e relevância do tema da violência. Conseguimos trazer todo um paralelo histórico de imagens, colocando o NEV como espectador ativo desses 30 anos de democracia e expondo todos os enormes desafios desse período de transição democrática e que persistem até hoje.

Como foi para vocês conviverem com a execução desse projeto ao longo dos últimos 3 anos?

Fabrício: O projeto teve uma fase de pesquisa de imagens e decupagem muito extensa. Tanto nos acervos do NEV quanto nos materiais de emissoras e jornais, buscar ilustrar todas as fases do nosso período democrático foi um dos maiores desafios desse projeto. Em segundo ponto o próprio paralelo entre as entrevistas do núcleo e os discursos históricos foi desafiador pra montar a cronologia necessária. Outro desafio foi a qualidade de alguns arquivos e o tratamento adequado para que ao produto final desse certo. Após a decupagem e montagem e finalização do áudios e vídeos estarem prontas foi o momento do núcleo decidir o momento certo de comunicar esse material. E acredito que agora seja um momento adequado até mesmo porque dentro do nosso dia a dia, continuamos a ser bombardeados por enredos assim.

2020 é um ano que trouxe desafios novos para a democracia no Brasil e no mundo. Como vocês vêem a oportunidade de finalizar e lançar esse documentário neste momento?

Vitor: As filmagens do documentário foram feitas em 2018, antes das eleições presidenciais, mas acredito que as análises do filme conseguem explicar os caminhos que nossa democracia estava tomando e que levaram ao que temos hoje, sobretudo quando as democracias sociais ou mesmo as liberais do mundo têm sido deterioradas por governos que foram eleitos, mas que operam minando as instituições e as bases do Estado de direito e da democracia. Por isso o documentário tem atualidade e urgência de ser levado ao público. Quanto à crise mundial gerada pela pandemia da Covid-19, também são colocados à prova questões tratadas no documentário, como a expectativa das democracias de que os cidadãos devem respeitar as leis no espírito e em condições sociais que os permitam combinar liberdade e solidariedade.

Fabrício: O momento exige pensamento crítico e um alto nível de percepção dos fatos. Problemas de ordem mundial como a pandemia da Covid-19, escancaram problemas que outrora passam desapercebidos mas trazem também a necessidade de mudança e uma reflexão individual que afeta toda a sociedade. Gosto de dizer que tudo é sobre direitos humanos: questões de saúde, econômicas, de meio ambiente e sócio-culturais fazem parte da nossa história como civilização e como seres individuais. Diante de movimentos cada vez mais coesos de liberdades civis e direitos igualitários, esses conteúdos são sempre bem vindos por acrescentarem pontos importantes nesse debate todo.

O lançamento do filme coincide e se soma às celebrações de 30 anos do NEV-USP. Qual foi a importância do NEV ao longo desses 30 anos?

Vitor: O NEV tem uma importância fundamental, pois não há democracia se não houver produção de informação de qualidade, independente e de caráter científico, sobre fenômenos como violência, direitos humanos e segurança pública. Assim, o NEV cumpre o papel tanto de dar fundamentos para políticas públicas nessas áreas, como para alimentar o debate público e informar o público e fomentar o debate qualificado na população sobre esses temas. Mais atualmente tem tido impacto também na educação básica, com o Projeto Observatório de Direitos Humanos em Escolas. Um centro como o NEV, ligado à USP, é a garantia que é possível produzir conhecimento e ação em prol da democracia e dos direitos humanos para todos, para além de embates ideológicos e partidários.

E quais são os maiores desafios atuais do NEV como centro de pesquisa sobre a democracia?

Vitor: Se o NEV contribuiu como informação de qualidade sobre violência e direitos humanos quando não haviam centros ou instituições com trabalho semelhante, e se contribuiu para a formulação de políticas públicas e a construção de instituições de defesa dos cidadãos e da sociedade em várias temáticas, atualmente o NEV se cumpre a um papel ainda mais qualificado de produção científica avançada, quer dizer, não somente produz dados brutos sobre os temas de atuação, mas produz estudos de fôlego e análises aprofundadas, capazes de impactar no debate público e as políticas públicas sem adentrar no “tiroteio político-ideológico”. Esse é seu maior desafio, manter sua independência e aumentar a qualidade das pesquisas e análises, servindo de base e parceira para o trabalho de outras instituições e entidades ligadas ao monitoramento de violências, segurança pública e direitos humanos, muitas das quais surgiram de quadros formados pelo NEV.

Como vocês chegaram à ideia final do nome e da arte do filme?

Fabrício: O título surgiu entre outros nomes e tudo que fizemos tinha que passar por uma aprovação do próprio NEV. Queríamos que sempre tivesse a identidade de comunicação do núcleo e sua assinatura. Além disso, os títulos dos capítulos, em um roteiro que foi definido por mim e pelo Vitor, nos orientou bem nesse sentido. O paradoxo existencial entre bom e mau ou entre qualquer polaridade em que se envelope dois pensamentos diferentes como antagônicos nos trouxe a inspiração para o nome. Além disso gosto de dizer que projetos assim ganham vida própria e no guiam muito durante todo o processo. Estávamos muito abertos para essa condução natural conforme o material ia ficando pronto e o título e a direção de arte acabam sendo apenas uma consequência de todo o trabalho realizado.

Vitor: Como muita coisa da história e das características da formação do Brasil são frutos de grandes paradoxos e contradições, como colônia e genocídio indigena, império e independência, república e escravização de povos negros, ditadura e modernização, a redemocratização brasileira tem sido marcada nas três últimas décadas por três grandes paradoxos ou tensões, profundamente estudadas pelo NEV, e que impedem a consolidação do estado de direito, dos direitos humanos e da democracia. Democracia e violência, direitos humanos e segurança pública, e confiança nas leis e desobediência. Esses paradoxos são simultâneos e interdependentes, mas foram mais evidenciados pelo NEV nos anos 90, 2000 e na segunda década dos 2000, e na minha opinião sintetizam as pesquisas do NEV em cada uma dessas décadas.

“Paradoxos – 30 anos de Democracia e Direitos Humanos no Brasil” é uma produção do Núcleo de Estudos da Violência da USP e dirigido por Vitor Blotta e Fabrício Bonni