Nota do NEV/USP | Qual é a relação entre violência e escolas?

12/05/2023

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Qual é a relação entre violência e escolas?

Contribuições do NEV para a compreensão e prevenção do problema

As instituições brasileiras são historicamente marcadas por contradições e violências de diversos tipos e as escolas não são exceção. Forjadas oficialmente no início do século XIX no Brasil por força de atos de atos de D. Pedro I, as escolas tiveram a exclusão, a desigualdade e a punição como suas marcas de origem.

Na época, além da exclusão dos povos negros escravizados, só podia haver escolas de meninas nas cidades mais populosas. Havia distinção entre currículos de meninos e meninas e entre as cadeiras de mestres e mestras e as punições aos comportamentos desviantes de estudantes iam da humilhação pública à palmatória.

Mesmo com as reformas do ensino formal a partir da instituição da República (1889), quando a educação se tornou um direito público, as exclusões e desigualdades continuaram, como com a distinção entre escola primária profissional e ensino superior, sendo a primeira para formar a massa de trabalhadores das cidades e a segunda para formar quadros da burocracia – que, ao mesmo tempo, consolida-se liberal e conservadora, como demonstrou o estudo de Sérgio Adorno sobre a cultura do bacharelismo jurídico na São Paulo no século XIX.

Esse processo contribuiu para a formação, no século XX, de uma sociedade de classes, com uma distribuição desigual de recursos e poder punitivo do Estado entre escolas, universidades e seus públicos.
Com esse histórico, era de se esperar que, apesar dos esforços da constituinte de 1988 para a concretização do ideal de uma educação plural e democrática nas últimas três décadas, contra a perspectiva nacionalista, punitivista e disciplinar dos períodos ditatoriais do século XX, as escolas continuassem a ser espaços de reprodução de violências, algumas delas indiretas e estruturais, como o baixo investimento no ensino público, o racismo e o machismo, e outras mais diretas, como as violências interpessoais e institucionais.

Em síntese, podemos dizer que a escola é atravessada por diversas formas de violência presentes na sociedade. Exploramos a seguir algumas delas a partir de estudos produzidos nos últimos trinta anos pelo NEV/USP.

 

Violência contra Crianças e Adolescentes

Uma das formas de violência que atravessa as escolas é aquela contra crianças e adolescentes. As pesquisas da área demonstram que esse grupo tem sido historicamente vítima de diferentes formas de violência social e estatal. Na Dissertação de Mestrado “Emergência do código de menores de 1927: uma análise do discurso jurídico e institucional da assistência e proteção aos menores”, Marcos César Alvarez demonstrou que esse grupo foi, desde aquela época, demarcado pelo punitivismo, pela estigmatização e pela seletividade na punição pelo Estado.

O dossiê “O adolescente visto como problema: disputas narrativas, produção legislativa e punição”, organizado por Bruna Gisi, Mariana Chies Santos e Marcos César Alvarez na revista Sociologias (2021), analisou comparativamente sistemas de justiça juvenil de três países sob a perspectiva das tendências punitivistas, presentes no Brasil desde a formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) , no final dos anos 1980 no Brasil.

Em relação aos homicídios, desde os anos 90 as vítimas mais numerosas no Brasil são jovens negros com idade entre o final da adolescência e o início da vida adulta, residentes nos bairros que compõem as periferias das grandes cidades. A explosão de casos dessa forma de violência nos anos 90 mobilizou o país e a comunidade internacional, e foi monitorada e analisada pelo NEV em trabalhos importantes, como o texto “Violência contra crianças e adolescentes, violência social e estado de direito” (Pinheiro e Adorno, 1993), em que se denunciavam os assassinatos de crianças e adolescentes supostamente praticantes de delitos, além dos maus tratos nas então chamadas “instituições de bem-estar do menor”.

Abordando o recorte das crianças em situação de rua no país, o livro “Vidas em Risco: assassinato de crianças e adolescentes no Brasil” (1991) foi coordenado por Myriam Mesquita Pugliese de Castro pelo NEV/USP. A publicação resultou de uma cooperação entre o Núcleo e o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MMNR) e alcançou uma grande repercussão na época, ao revelar um alto número e uma curva de elevação dos números de homicídio envolvendo esses jovens. Deve-se destacar que, se na década de 90 se observava a promulgação do ECA, o país também acompanhava uma série de ocorrências escandalizantes como a Chacina da Candelária (julho de 1993).

Infelizmente o grave problema de homicídios de adolescentes persistiu, como continuavam a denunciar, em 2015, Paulo Sérgio Pinheiro e Marina Pinheiro no texto “A prevenção de homicídios de crianças na América Latina: um imperativo de direitos humanos”.

Outro estudo sobre o tema, intitulado “Vitimização fatal de crianças no espaço público em decorrência da violência interpessoal comunitária: um diagnóstico da magnitude e contextos de vulnerabilidade na América Latina”, (Peres te.al., 2015), explica que, desde os anos 90, “(…) a presença do crime organizado e as gangues, a violência policial, crianças em situação de rua, migração e conflitos armados emergem em um cenário de pobreza e desigualdade que, juntos, tornam as crianças particularmente vulneráveis à violência comunitária com desfecho letal.”

Esse panorama mostra que, apesar dos avanços legislativos e de políticas públicas para infância e a adolescência desde 1988, incluindo a área da educação, a sociedade brasileira e setores do Estado ainda não incorporaram a doutrina da proteção integral e a noção de que adolescentes tratam-se de sujeitos de direito em condição de desenvolvimento, como apregoa o ECA.

 

Violência Escolar

As relações entre violência e escolas foram objeto de duas investigações importantes do NEV/USP no início dos anos 2000. A primeira foi a Dissertação de Mestrado de Caren Ruotti, “Os Sentidos da Violência Escolar: uma perspectiva dos sujeitos” (2006), e a segunda o livro “Violência nas Escolas: um guia para pais e professores” (2007), também de autoria de Ruotti, junto aos pesquisadores Renato Alves e Viviane Cubas.

No primeiro estudo, Ruotti identificou que, das relações entre violência nas escolas, muitas delas violências interpessoais, e a violência nos bairros, sobretudo aquela ligada ao tráfico de drogas e às desigualdades socioeconômicas, emerge o que se pode denominar violência escolar: quando a própria instituição reproduz violências interpessoais e institucionais — dentro dela e contra ela —, seja por resistir a pressões por uma educação mais democrática, seja pelas dificuldades cada vez maiores de efetivamente representar possibilidades de futuro e ascensão social dos jovens.

Já no livro “Violência nas Escolas: um guia para pais e professores”, os autores indicam que as dinâmicas da vida social, sobretudo as longas jornadas de trabalho de adultos, fizeram com que as escolas tivessem que suprir demandas além das propriamente pedagógicas, como a proteção, a autoestima de crianças, a relação com outras crianças e adultos, a apropriação de valores, crenças e o desenvolvimento do senso crítico, sobretudo em locais onde as redes de proteção social não são capazes de atender jovens fora do período escolar.

Com isso, a escola se torna tanto um ambiente fértil para promover o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes como também um ambiente propenso a reproduzir as violências presentes na sociedade e no Estado. No entanto, essas violências ora são percebidas pela sociedade somente como questões criminais, ora são minimizadas, algo que a pesquisa procura desmistificar. Isto é, se a escola é capaz de garantir condições para o desenvolvimento saudável das competências e habilidades dos estudantes e de gerar um ambiente favorável a experiências positivas de interação social e ensino-aprendizagem, diminui-se o risco da reprodução de violências.

 

Prevenção da Violência

Os estudos do NEV/USP sobre o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes também se debruçaram sobre a primeira infância e a prevenção de violências contra bebês e mães. Os projetos desta linha, coordenados pela professora Nancy Cardia no início dos anos 2000, envolveram atividades de formação e visitação a mães e mulheres multiplicadoras dos direitos ligados à primeira infância, de modo a prevenir desde violências contra mulheres grávidas às violências domésticas.

Estes trabalhos, feitos em parceria com instituições sociais relevantes no Distrito do Jardim Ângela, como a comunidade Santos Mártires, somou-se a um amplo mapeamento de boas práticas institucionais de prevenção da violência e proteção de crianças e adolescentes, a criação de um site com dicas sobre direitos humanos para a população (“Guia de Direitos”), bem como a publicação de um livro bilíngue a respeito de sua pesquisa sobre visitação doméstica como método de prevenção da violência.

Esses projetos renderam ao NEV/USP um espaço no rol de colaboradores da Organização Mundial de Saúde (OMS), na área de Pesquisa e Prevenção da Violência (número de referência 61) contra crianças e adolescentes. No âmbito desta participação, o Núcleo realizou a tradução do documento de referência  “INSPIRE”, um pacote de recomendações técnicas da OMS dirigidas a todas as pessoas empenhadas em prevenir e enfrentar a violência contra crianças e adolescentes — do governo aos cidadãos, na sociedade civil ou no setor privado.

A terceira medida do documento diz respeito à “Segurança do Ambiente” que crianças e adolescentes frequentam. O INSPIRE é o documento norteador da Parceria Global para o Fim da Violência contra Crianças e Adolescentes (Global Partnership to End Violence Against Children), cuja implementação no Brasil é objeto de atuação da Coalizão pelo Fim da Violência contra Crianças e Adolescentes, que o NEV/USP integra desde sua fundação, em 2017, com dezenas de organizações do país.

Entre as atividades recentes do NEV/USP na parceria com a OMS, hoje liderada por Marcelo Batista Nery, destaca-se a série de 10 seminários sobre o impacto do crime organizado na vida de crianças e adolescentes (2022). Vale notar que os seminários sobre o tema nos estados do Pará e Rio Grande do Norte abordaram situações especificamente relacionadas ao ambiente escolar.

 

Socialização Legal

Mais recentemente, o NEV/USP passou a olhar para a socialização de crianças e adolescentes de forma ampla, buscando compreender como desenvolvem crenças, atitudes e comportamentos relacionados às autoridades de modo geral, e não apenas a partir das instituições que lidam com esse público diretamente.

O Estudo de Socialização Legal em São Paulo (sigla em inglês SPLSS), desenvolvido no âmbito do Programa “Construindo a Democracia no Dia-a-Dia” (NEV-CEPID/FAPESP), busca explorar, no decorrer do tempo, as diversas experiências e opiniões de adolescentes a respeito da sua relação com a família, com o grupo de pares, com a escola e os professores, e com as autoridades legais, como a polícia.

Em um artigo publicado na Revista Brasileira de Segurança Pública, pesquisadores estudo apresentaram resultados que mostram diversas formas de violência e vitimização a que os e as adolescentes estão expostos, e como essas experiências influenciam ou não as relações construídas entre adolescentes e autoridades (pais, professores ou policiais).

A pesquisa indica que a maneira como os e as adolescentes são tratados no dia a dia por essas figuras de autoridade é muito importante para a construção de relações de confiança, que ajudam a prevenir situações de violência. Apesar de não trabalhar diretamente o tema dos ataques às escolas, o estudo ajuda a compreender as complexidades da vivência dos e das adolescentes e as diferentes experiências que podem influenciar seus comportamentos e crenças.

 

Educação em Direitos Humanos nas Escolas

Outra frente de atuação do NEV/USP na área da educação é o Projeto Observatório de Direitos Humanos em Escolas (PODHE). Sua equipe atua desde 2017 com escolas públicas em regiões periféricas de São Paulo para promover, junto a estudantes e professores dos ensinos médio e fundamental, relações de respeito mútuo, participação, pertencimento e protagonismo infanto-juvenil nas comunidades escolares e seus bairros.

A metodologia do PODHE consiste em oficinas de sensibilização, vivência e formação em temas de direitos humanos relacionados ao cotidiano dos estudantes, além de atividades de monitoramento desses direitos, visando informar as escolas e estimular ações de transformação de seus espaços e bairros. O projeto atua em sala de aula, nos períodos regulares, com estudantes e professores do 6º ano do ensino fundamental e do 1º ano do ensino médio, períodos de transição entre infância para adolescência e da adolescência para vida adulta.

As experiências do projeto com questões de violência nas escolas são cotidianas. Foram identificados casos de violência interpessoal, estrutural e institucional, problemas de infraestrutura, jornadas excessivas de trabalho de professores e gestores. Duas questões se destacam nessas experiências: o quanto o termo “bullying” acaba por individualizar, ofuscar e minimizar violências estruturais da sociedade, como o machismo, o racismo, o classismo, a transfobia, o capacitismo e a xenofobia; e a gravidade das questões de saúde mental entre estudantes, professores e demais membros das comunidades escolares, cujas causas também remontam discussões sociais de fundo. Identificamos que essas questões se acentuaram com a pandemia e com o recente avanço de ideários conservadores e de extrema-direita na sociedade brasileira, com acentuada repercussão em suas instituições, como o movimento escola sem partido e as escolas militares.

Diante desse cenário, o PODHE se soma a diversos projetos espalhados pelo Brasil que atuam no “chão das escolas”, por iniciativa de professores, gestores e parcerias com universidades e outras entidades, para promover uma educação em direitos humanos como espaços para a convivência pacífica com as diferenças e o fomento a projetos coletivos capazes de engajar crianças e adolescentes a pensar criticamente sobre seus direitos e a monitorá-los em seu cotidiano.

Em relação ao PODHE, percebe-se que os questionários e testemunhos dos participantes do projeto têm contribuído para aumentar seus repertórios sobre direitos humanos, sua empatia em relação às diferenças, o pertencimento a grupos escolares e a disposição em atuar em pautas como igualdade de gênero, igualdade étnica e racial, além de fortalecer suas perspectivas de parcerias e de acesso à universidade pública.

Numa outra linha de atuação, o PODHE também realiza atividades de formação de docentes e gestores em temas de direitos humanos, com o objetivo de multiplicar e inspirar projetos semelhantes. Nessas atividades discutem-se as metodologias do PODHE, assim como questões de violência nas escolas, com abordagens interseccionais e decoloniais, com foco em ações de prevenção da violência e na ativação das redes proteção dos direitos de crianças, adolescentes e, por fim mas não menos importante, dos profissionais da educação.

 

Soluções multissetoriais para problema multicausal

A experiência do NEV/USP com pesquisas sobre violência e escolas indica que o fenômeno mais recente de violências extremistas, como outras manifestações da violência, precisa ser pensado a partir de múltiplas causas e enfoques. Em texto recente publicado no jornal da USP, o pesquisador e especialista no estudo de homicídios Bruno Paes Manso buscou descortinar os motivos que levam jovens brancos a praticarem atos de extrema violência contra escolas e crianças.

Esses motivos estão ligados a narrativas maniqueístas, conspiracionistas e de ódio aos diferentes, narrativas essas que não se originam, mas são amplificadas e fortalecidas nas mídias sociais e suas tecnologias de reverberação. Essas narrativas se alimentam de contextos violentos, de desordem e sem uma presença legítima do Estado e de outros poderes sociais.

Embora um dos caminhos seja o monitoramento e a regulação das mídias sociais, o enraizamento histórico da violência na sociedade e nas instituições brasileiras não permite apontar causas únicas e tampouco soluções únicas para o problema. As respostas precisam ser multissetoriais, portanto. Devem envolver diversas instituições do Estado, sociedade civil, universidades, e primeiramente, as próprias escolas, cujas demandas históricas exigem atenção, investimentos e cuidado proporcionais à sua importância na sociedade.

 

Texto: Vitor Blotta (PODHE), Aline Mizutani (SPLSS), Debora Piccirillo (SPLSS), Fernanda Lemos (PODHE), Renan Theodoro (SPLSS), Sérgio Adorno e Marcos César Alvarez.